O terceiro episódio da 12ª temporada de Doctor Who irritou muita gente. Embora o episódio contribua para a história de Doctor Who, as pessoas pareciam chateadas com o fato de Doctor Who ter se tornado “político”.
Muitos fãs não gostaram nem um pouco de “Orphan 55”, com um pessoal ficando muito chateado, de fato, por uma série que eles procuram por puro escapismo, onde uma alienígena mágica leva os humanos para longe em uma caixa azul para aventuras no tempo e no espaço, ter uma mensagem que abordou diretamente as mudanças climáticas.
O episódio encontra A Doutora (Jodie Whittaker) e seus companheiros passando algum tempo em um planeta morto e abandonado, apenas para descobrir ao final que o planeta em questão é a Terra. É uma Terra de uma dimensão/linha do tempo alternativa, e a Doutora termina o episódio dizendo à sua família que este pode ser o futuro para esta Terra em particular, mas não precisa ser.
Ações podem ser tomadas. Soluções podem ser encontradas. Este é um momento na história de Doctor Who, em que o que aconteceu com essa Terra alternativa não precisa ser um ponto fixo. A humanidade está cometendo erros enormes, mas não é tarde para mudar. Raramente é quando se trata desta série.
Muitos fãs não gostaram disso. Para ser justo, muitos se opuseram à maneira como a mensagem foi entregue, não à própria mensagem. As palavras da Doutora, que parecem verdadeiras, chegam logo no final, são ditas a todo volume e o episódio acaba. A noção de dimensões alternativas foi brevemente abordada em algumas histórias de Doctor Who, embora “Mundo de Pete” (uma dimensão alternativa da Terra) tenha estabelecido esse conceito já na segunda temporada da New Who.
Poderia a entrega da mensagem ter sido mais, por falta de uma maneira melhor de dizer, elegante? Claro. Menos óbvia? Certeza que sim. Ao lidar com esse problema específico, no entanto, talvez o tempo para a elegância tenha acabado. Não há nada de errado com a própria mensagem. Sim, este programa apresenta entretenimento e diversão, mas é definitivamente ficção científica. As estatísticas muito reais sobre as mudanças climáticas constituem “ciência”, então, usando essa ciência, o episódio segue tudo até um ponto final teórico e ficcional. Veja quase todas as histórias de ficção científica sobre inteligência artificial, robôs, viagens espaciais etc. para mais do mesmo.
O problema é que aqui em 2020 a ciência das mudanças climáticas já passou de ciência. Tornou-se politizado no mundo real, e alguns fãs não querem ser lembrados da política do mundo real enquanto assistem a Doutora na caixa azul. Eles preferem ir a uma aventura maluca com Nikola Tesla ou se divertir com dinossauros em uma nave espacial. Não há nada errado com isso, além do problema de que as mudanças climáticas são mais um debate político do que um dado científico. Desconcertante, mas aqui estamos nós. Isso significa que, ao lidar com essa ciência, Doctor Who está lidando com questões políticas sérias entre seus vários alívios cômicos.
Isto não é novo.
A série sempre foi política. Como quase toda ficção científica. Quando você lida com a condição humana, crenças e valores pessoais entram em jogo, assim como os tempos em que você está vivendo. Apenas acompanhando a ficção científica na televisão, veja Battlestar Galactica, The Expanse e todas as séries de Star Trek para obter mais exemplos. Quando Doctor Who trabalha da melhor maneira, isso assusta um pouco. Faz você querer ser melhor. Isso faz você querer se levantar e agir. Esse é um dos maiores poderes que a série tem, e é algo que espera-se que nunca perca.
Um dos melhores episódios da 11ª temporada foi “Demons of the Punjab”, que contava uma história muito política (e histórica) sobre a partição da Índia. A 11ª temporada também apresentou o episódio “Rosa” logo no início, com a Doutora e a sua família tendo de garantir o legado de Rosa Parks a partir das ações de um racista espacial que viaja no tempo. Esse episódio não foi político? Pode apostar que foi político sim.
Os exemplos citados são relativamente novos na série, por serem da era de Chibnall, mas seus predecessores também tiveram seus momentos políticos. A 10ª temporada contou com o Doutor de Peter Capaldi dando um soco no rosto de um racista (“Thin Ice”), e também contou com o 12º lidando com um suprimento de ar limitado no espaço graças ao capitalismo (“Oxygen”). Nona temporada? Bem, “The Zygon Inversion”, da 9ª temporada, deu a Capaldi um discurso glorioso sobre guerra e comunicação. Quão mais político é possível ser?
O Doutor de Matt Smith lidou com futuros humanos maltratando uma baleia estelar em seu segundo episódio (“The Beast Bellow”) e fica tão bravo que grita: “Nenhum humano tem algo a me dizer hoje!” O Doutor de David Tennant não gostou das ações políticas da primeira-ministra Harriet Jones, então ele a tira do cargo usando uma quantidade muito pequena de palavras para criar um efeito dominó político (“The Christmas Invasion”).
Mesmo em 2005, o Doutor de Christopher Eccleston lidou com o fato de ele (ou qualquer um) ter o direito de condenar outro ser à morte em “Boom Town”. Não é fácil. Você poderia argumentar que os temas levantados naquele episódio eram éticos e não políticos, mas, mais uma vez, a linha entre essas coisas é muito pequena – em 2020 essa linha é quase inexistente.
As histórias políticas de Doctor Who não são necessariamente só dos episódios que acontecem desde o reboot de 2005. A série clássica tinha bastante conteúdo político, como, por exemplo, um dos arcos mais amados da história de Doctor Who , “Genesis of the Daleks”. O Doutor tem os meios para impedir que os Daleks existam em primeiro lugar. Os Daleks podem parecer um saleiro alienígena gigante cheios de ódio, mas sua ideologia (e política) são puro fascismo. Eles representam tudo o que a Doutora é contra, tanto em suas palavras quanto em suas ações.
Mesmo assim, quando o Doutor de Tom Baker precisa tocar apenas dois fios para acabar com toda essa raça estridente de fascistas, ele faz a pergunta: “Eu tenho o direito?”
Um Senhor do Tempo questiona a ética sobre como apagar esse tipo particular de fascismo da existência. É a questão de “Boom Town” em uma escala genocida e é um dos momentos mais famosos de Doctor Who.
Você vai dizer que uma história envolvendo genocídio não é política?
É política. Também é construída corretamente. Não está preso no final do arco, como foi a mensagem em “Orphan 55”. Mais uma vez, talvez seja esse o problema real para algumas pessoas, a maneira como a mensagem foi inserida. Talvez a questão fosse a de que “Orphan 55” se tornou político e pregador e foi completamente transparente sobre isso. Um pouco abertamente político e pregador em 2020, uma época em que ninguém tem muita paciência com política. Mas as mudanças climáticas não devem ser políticas, o que é metade do problema.
O discurso da Doutora no episódio muito difamado (que, para ser justo, tem seus defensores) sobre como não é tarde demais para consertar os danos a humanidade à Terra é bastante contundente. Whittaker tem apenas algumas linhas para entregar a mensagem – ela não tem tanto material como o discurso de Capaldi em “Zygon Inversion”, ou três episódios como Baker. Definitivamente, era brusco e transparente, sem dúvida, mas várias partes da Terra estão pegando fogo atualmente. A abordagem sutil não está funcionando, a surpresa é que a Doutora não tenha pegado a maldita câmera e gritado essas linhas diretamente para o público.
Um episódio de Doctor Who com muita ação e diversão sempre é bom. Episódios do Doctor Who que são históricos e que brincam com o tempo também são ótimos. E é maravilhoso quando eles enfrentam coisas reais que estão acontecendo em no mundo agora, porque no mundo de Doctor Who, a Doutora está sempre lá para dizer que as pessoas podem mudar. Uma das virtudes da ficção científica é que ela mistura o atual com naves espaciais – você começa a aventura, mas também precisa se confrontar com o mundo em que vive. Isso lembra que você é cúmplice nesse mundo. Tantos escritores clássicos de ficção científica têm contos políticos muito mais sombrios (e provavelmente mais realistas) para mostrar – a diferença é que a marca registrada de Doctor Who é a esperança, assim como em “Orphan 55”.
Você terá seus lobisomens espaciais e monstros peidorrentos gigantes com Doctor Who, mas de vez em quando você será lembrado do mundo real. Acontece que a humanidade vive em um mundo real onde a ciência se tornou política e tudo parece perdido. Tudo parece impossível em uma base quase diária – é por isso que precisamos da Doutora.
A Doutora diz, ainda que de maneira muito apressada, que nem tudo está necessariamente perdido. Que ainda há esperança, que sempre há esperança. Que os humanos subestimam a capacidade de mudar para melhor. A hora da ação é agora.
Se a esperança diante da extinção se tornou política, que assim seja. A série aborda isso. Ter uma queixa com a maneira como a mensagem foi entregue é uma coisa, mas dizer que Doctor Who não deveria ser um programa político é como dizer que a Doutora não deveria viajar no tempo. Questões políticas, atuais e atemporais, fazem parte do DNA do programa. Eles sempre foram. Não é o trabalho do programa pintar quadros bonitos toda semana. Você quer isso, vá ver alguns Monet.
Doctor Who não tem apenas o direito de ser político, se quiser. Tem um dever.
Traduzido de: syfy.com