Para celebrar o lançamento da antologia de Doctor Who – The Wintertime Paradox, por Dave Rudden, a BBC liberou o conto Canaries, uma história bônus que está conectada com Time Lord Victorious. Confira aqui a história traduzida e divirta-se!
Canaries
Em uma pequena vila nos Alpes de Verbier, há um museu para todas as coisas que não deveriam existir.
Não parece grande coisa; apenas uma casinha no final de um longo caminho, com baixos beirais e uma porta verde. Quase nem dá para ver, a não ser por uma pequena e interessante placa na janela.
Quando as pessoas pensam em museus, elas imaginam pisos de mármores, pilares, seguranças e lojas de lembrancinhas. Contudo, o mundo está repleto de pequenos sinais nas janelas, colocados ali por hobby por seres com a pele enrugada como uma casca de noz, para te atrair até um cômodo pelo qual você pode perambular por cinco minutos durante um feriado e então nunca mais pensar sobre isso.
The Shanghai Museum of Propaganda Posters está isolado em um porão de um bloco de apartamento. The Darwin Twine Ball Museum é apenas um centro comunitário com uma bola de barbante de quatro metros do lado de fora. The Bendery Military Museum é um trem soviético a vapor ao lado da estação de trem desativada em um país que não existe mais oficialmente.
Qualquer construção pode ser um museu se houver alguém que se importe o suficiente com o que estiver nela.
The Verbier Museum of the Impossible é administrado por Anke Von Grisel. A artrite deixou os nós de seus dedos grandes como cascas de tartarugas bebê. E toda manhã ela demora um bom tempo para amarrar o lenço preso em seu pescoço.
Sendo ela a proprietária e única funcionária do museu, este pode ser aberto em qualquer hora que ela quiser. Ainda assim, Anke gosta de ser pontual e toda manhã ela abre a porta da frente exatamente às 09h45min. Na maioria dos dias, aparece pelo menos um turista curioso lá fora.
Isso ocorre por causa da placa. Na placa está escrito:
VERBIER MUSEUM OF THE IMPOSSIBLE
FUNDADO EM 2044
SEM VIAGENS DO TEMPO, POR FAVOR
“Sim, sim”, ela diz, dando as boas-vindas. “Vamos começar”.
O museu é um simples cômodo em frente a casa dela. O piso é de pinho branco, nas paredes há desbotados tapetes de lã, algodão e seda. Doze itens ficam expostos em cima de blocos pelo quarto. Os blocos são feitos pela Anke a partir de bétulas nativas de Verbier. Dizem que Gunther, cujo museu se localiza duas cidades depois, mantém uma coleção de marionetes do século XVII, comprou os blocos pela internet.
Anke acha isso horrível. Ela possui padrões de qualidade.
“Agora”, diz ela cuidadosamente enquanto se posiciona em frente ao primeiro bloco de exposição. Há pequenos recortes presos nas tábuas dos assoalhos, e os saltos das botas de caminhada dela deslizam por eles com um suspiro. “É um cano”.
Ele tem 15 centímetros de comprimento e é completamente simples. A única coisa interessante sobre ele é que foi colocado sobre um quadrado de seda branca reluzente. Os padrões de Anke são precisos.
“Policloreto de vinila”, explica Anke. “Nada demais. Foi feito nos anos oitenta. Nunca chegou a ser instalado ou usado”.
Anke tinha um modo bem particular de falar. Seco. Cuidadoso. Como se tudo o que ela dissesse saísse de um cartão de anotações no qual apenas um grupo de palavras é apropriado.
“Feito por uma companhia chamada Marburg Plastic. Consegue ver?”
Ela aponta para um pequeno selo.
Então ela espera. Ela sempre espera. Anke é pequena e magra. A voz dela é áspera. Contudo, ela é, a seu modo, uma atriz.
“Exceto que essa empresa não existe. Nunca existiu. Marburg nunca teve uma fábrica de plástico. Eu estive lá. Eu pesquisei. Este cano é feito por uma máquina de produção em massa. Deve haver milhares. Entretanto, eu não consigo encontrar nenhum outro igual a este. Nenhuma fábrica. Nenhum empregado. Nenhum registro. Nada igual a ele existe neste mundo.”
No próximo bloco há outro quadrado de seda. Nele há uma moeda.
“Eu odeio isto” – diz Anke discretamente.
De um lado da moeda está uma águia de duas cabeças e do outro uma imagem de Adolf Hitler. Na moeda pode-se ler a data de 1954.
“Está começando a ver?”
O terceiro bloco contém uma esfera de metal coberta por uma grade de circuitos.
“Eu não sei o que é isso”, confessa Anke. “Recebi de um colecionador britânico. Ele o encontrou no jardim”.
No cartão está escrito Toclafane.
“Ele não soube me explicar como conhecia essa palavra”, disse Anke. “Simplesmente estava na cabeça dele. Nenhuma lembrança. Nenhum contexto. Apenas vagando, sem fundamento. Como um pesadelo.”
O quarto item da exposição é um camafeu com uma pintura do Napoleão em um estegossauro.
Nesse momento Anke parou, como se de repente tivesse percebido que sem uma explicação essas coisas não passariam de bugigangas confusas. E com isso, as relíquias – as obsessões da vida dela – aparentassem ser nada mais do que lixo.
“Outros museus… museus normais guardam relíquias. Pedaços do passado. Evidenciam as vidas e culturas que existiram ali”.
Ela apontou para os doze blocos.
“Acho que essas relíquias são de outros passados. Passados que nunca aconteceram. Uma fábrica. Um regime. Uma invasão, por criaturas que não são da Terra. Histórias alternativas. Agora, tudo o que resta delas são esses itens expostos, aparecendo na nossa linha do tempo como um pé fora do edredom. Pequenas imagens do que poderia ter acontecido.”
Anke esfregou suas têmporas e se apressa para chegar logo ao final da exposição. Apesar disso, ela não diz nada quando chega ao último item.
“Se quiser olhe em volta. Eu não tenho loja de presentes.”
Mais tarde, o antigo telefone fixo de Anke começou a tocar. Ela não era casada e nem tinha família. Apenas uma pessoa poderia estar ligando.
“Anke! Olá!”
A voz era jovem, inglesa e falava tão rápido que as palavras se atropelavam. Onde quer que ele estivesse, estava acontecendo algo muito barulhento ali. Anke podia ouvir intensos estrondos e rugidos, além de um forte estalo e um crepitar da eletricidade. Também havia outras vozes – rosnados mecânicos que pareciam mais rodagem de tanques do que qualquer som que a garganta humana pode produzir.
“Oh, calem a boca! Não estão vendo que eu estou em uma ligação?”
A voz não parecia sempre jovem. Às vezes, ele parecia mais velho, e maliciosamente frustrada, ou ligeiramente divertida. Outras vezes, tinha sotaque escocês, rosnando como um motor em marcha lenta. Uma vez, em outra ligação, parecia ser uma voz feminina, o que poderia ter confundido Anke se ela não fosse a dona de um museu para coisas impossíveis. Precisava de muito mais do que isso para confundir Anke.
Anke sempre conseguia reconhecer quem era, independentemente de como a voz soasse.
“Vou falar novamente”, ela disse. “Você não pode vir aqui. Você não pode levar meus objetos de exposição.”
Havia um barulho de rugido crepitando na linha, de fogueira estalando ou feras rosnando, e Anke instintivamente sacudiu a cabeça.
“Anke”, disse a voz na linha. “Escute – esses itens que você tem colecionado. Eles são sintomas. Indicam que algo está errado. Se você apenas pudesse me deixar estudá-los”.
Ela olha em volta para a exibição. Poucos itens são valiosos, aspecto. E ainda assim, ela não poderia perder nenhum deles, nem mesmo a moeda.
Seus olhos repousam sobre o décimo segundo bloco por um tempo.
“Adeus, Doutor”, Anke fala antes de desligar o telefone.
No dia seguinte, as máscaras chegaram.
Foi uma noite ruim para os objetos expostos. Sempre era assim, depois das ligações do Doutor. O fragmento de um cristal antigo vindo impossivelmente de um lugar chamado Mordeela balançando e crepitando em sua seda.
A gravata borboleta do smoking preto farfalhou como uma cobra assustada. As páginas da biografia de Adelaide Brooke ficaram brancas, como se não estivessem certas sobre como deveria ser o futuro da famosa astronauta.
Anke sentou com eles – falando com eles, acalmando-os – e quando ela levantou, havia uma caixa do lado de fora da porta.
Ela colocou a moldura de volta no décimo segundo bloco e levou a caixa para dentro de casa.
As pessoas sempre enviavam coisas para Anke avaliar. Artigos de jornais sobre invasões alienígenas que os próprios jornais diziam nunca terem escrito. Exames de sangue que provavam que os membros da família real eram lobisomens. Quase todas essas coisas eram inúteis.
Dentro da caixa estavam duas máscaras e um bilhete que dizia: usado por um culto há muito esquecido que adorava a impossibilidade e a contradição.
Anke segurou as máscaras cuidadosamente. A primeira era masculina e feita de prata. A segunda era feminina e feita de ouro. Os rostos dos moldes deveriam ser lindos, a não ser por uma peculiaridade de suas expressões. Uma… astúcia.
Uma crueldade objetiva, como deuses trapaceiros de um mito antigo.
Elas deixaram Anke inquieta.
O verão acabou e chegou o inverno. O fluxo de turistas diminuiu. Anke começou a construir os blocos para as máscaras. Foi um trabalho duro, e ela fez várias pausas, esculpindo um velho tronco para criar o formato que ela tinha em mente. Ela sabia que isso era uma loucura, mas quando ela colocou as máscaras sobre ele, ela imaginou que elas estariam felizes com o trabalho dela. Espíritos sendo homenageados.
Durante as noites, ela fazia alguns ajustes nos seus cartões de anotações, e tentava encontrar alguma referência de uma cultura que pudesse ter usado essas máscaras, ou qualquer outra pista que poderiam ter enviado a ela.
Anke estava usando suas últimas economias. Provavelmente as máscaras seriam os últimos objetos de exibição que ela teria.
Em uma noite de novembro, o Doutor ligou novamente. Desta vez, os sons de batalha estavam mais fortes. E a voz mais suave e rica. Havia um pouco de pirata e de poeta nele. E Anke, seca e desconfiada, imaginava como ele seria.
“Anke! Aqui é o Doutor. “Eu preciso que você…”.
“Já disse, os objetos são meus. Eu os protejo”, disse Anke na mesma hora.
“Há fendas no tempo, Anke. Alguém está causando esses pulos no tempo, como uma agulha em um disco. Esses itens que você tem colecionado – eles são… canários. Canários em uma mina de carvão. É a prova de algo errado acontecendo. Os tempos sombrios estão chegando.”
“Provas”, disse Anke. A palavra a confortava. Ela tinha esperança… “Então eu preciso mantê-las seguras. De todo mundo. De você”.
“Escute. Essas relíquias são como espinhos cutucando a realidade. Manter todas juntas pode abrir um buraco. Uma fratura. Algo pode passar por isso, Anke. E eu não faço ideia do que poderia ser”.
As máscaras brilhavam no canto do cômodo.
“Bom”, disse Anke e desligou o telefone.
O Dia de Natal em Verbier era branco e vermelho e teimosamente perene. Podia-se ouvir o som dos sinos ecoando nas montanhas. Como sempre, Anke comia seu modesto jantar de natal na pequena mesa da cozinha, enquanto tentava não olhar para o lugar extra e vazio. Vinte anos. Vinte anos se passaram.
No ano seguinte, eu não vou fazer isso. Ela pensava. Da mesma forma que havia pensado no ano anterior. E no ano seguinte.
Naquela noite, uma tempestade atingiu a montanha. O primeiro barulho de trovão foi tão alto que Anke saiu da cama antes que seus ossos se lembrassem de que estavam velhos. Relâmpagos no céu, brilhando o suficiente para ficarem marcados em sua memória, fortes o suficiente para gerar redemoinhos na neve.
Não foi o trovão que a acordou, Anke percebeu.
O telefone estava tocando.
Ela desceu as escadas cambaleando e vestindo o roupão. Outro repique e Anke se agarra ao corrimão para não cair. Parece que o trovão está sacudindo a casa e, apesar do barulho apocalíptico e dos estrondos, ainda é possível ouvir o barulho do telefone.
Anke se guia pela escuridão iluminada pela claridade dos relâmpagos. O vento quebrou uma janela, e agora a neve está entrando por ela. Os blocos caíram com o vendaval. A neve estava por toda parte. Os tapetes caíram das paredes.
Minha exposição. Meus tesouros.
Ela correu para o décimo segundo bloco e, só depois de ver que a velha moldura estava segura e inteira em suas mãos, ela atendeu ao telefone.
“Anke?”
Era uma voz que ela nunca tinha escutado, mas mesmo assim ela já sabia quem era.
“Anke?”
“Doutor?”
“Não mais”, disse a voz. Era uma voz antiga, profunda e quente como uma mina, rica como um Natal e duas vezes mais agradável. “Agora, eu sou mais um curador. Como você, Anke. E você precisa me ouvir. Não temos muito tempo”.
Anke olhou para a imagem em sua mão.
“Eu cometi erros, Anke. Tenho sido arrogante. Achei ser o único que sabia as respostas. Pensava que apenas eu poderia consertar tudo. Um tempo ruim. Um tempo sombrio. As coisas que você coletou são evidências disso. Vislumbres dentro de linhas do tempo. Fragmentos do que nunca foi.”
“Não entendo”, disse Anke, pensando que na verdade ela entendia. Ela praticamente só pensava sobre isso nos últimos vinte anos.
O argumento. A tempestade, muito parecida com a desta noite. O modo como ele saiu correndo pela porta. A forma como ele fugiu dela. Ele desapareceu, desapareceu tão completamente que ela começou até a duvidar da própria memória. Até que a foto em suas mãos foi a única evidência de que havia um espaço em seu coração que deveria estar preenchido por uma pessoa.
“Eu também não entendo”, disse o Curador. “Nada disso. Sempre que mais de um de mim se envolve vira essa bagunça. Eu mudei as coisas. Anke, eu estou preocupado de que ao ter feito isso, tenha deixa uma porta aberta e, com isso, algo tenha entrado.”
“É por isso que eu os mantenho aqui”, Anke sussurra. A neve está derretendo na foto que ela segura. “Eu pensei que se eu coletasse todas essas coisas, talvez ele também pudesse voltar.”
Ela ouviu um barulho atrás dela. Anke virou, e o relâmpago dividiu a escuridão em duas.
Ela vê que as máscaras não estão mais em seu lugar. Elas não estão em seu bloco, e também não caíram. Ao invés disso, estão suspensas no ar. Como estariam em outro museu que as colocariam penduradas por fios.
Não há fios neste museu. As máscaras estão exatamente na altura da cabeça. Como se estivessem presas nos rostos de pessoas que ela não pode ver.
É a coisa mais assustadora que Anke já viu na vida.
“Anke” – sussurra a voz em seu ouvido, enquanto pode-se ouvir o estrondo do trovão e ver o relâmpago uivando e as máscaras lentamente se voltando para ela, seus sorrisos cruéis brilhando amplamente. – “Você sabe o que é um paradoxo”?
Doctor Who: The Wintertime Paradox, antologia escrita por Dave Rudden para a temporada de festas, está disponível, em inglês, para venda online.
Veja o texto original de Canaries, em inglês, no site oficial de Doctor Who.
Ambientalista por formação, tradutora nas horas vagas, whovian carioca e viciada em livros, filmes e séries. Fã de ficção científica, especialmente quando envolve viagem no tempo.