Entrando na TARDIS mais uma vez, a primeira mulher a interpretar “O Doutor” conta sobre a vida em quarentena, e por que ela não olhou para outro papel.
28 de Novembro de 2020 • 18h
É 15h30 de uma quarta-feira chuvosa e Jodie Whittaker acaba de voltar de uma consulta médica. Animada e saltitante, ela está emocionada por ter recebido o resultado negativo do teste obrigatório de Covid-19, para que ela possa ir para Cardiff para vestir o casaco de Doutora, depois de quase um ano de filmagens adiadas.
“Esse foi o ponto alto do meu dia”, ela ri. “Agora eu preciso organizar a casa e empacotar minhas coisas – a gente subestima tanto partir, até que realmente acontece.”
Nós estamos conversando pelo Zoom, da sua casa em Londres, onde ela vive com seu marido, o ator americano Christian Contreras, e sua filha de cinco anos. Propositalmente posicionada em frente a uma parede branca, enfeitada apenas superficialmente com Blu Tack (para evitar que eu examine tanto seus gostos por decoração), ela tem sentido níveis de ansiedade bem altos nessa montanha-russa da Covid-19 em 2020 e anseia por algum senso de normalidade.
“Eu sou muito ansiosa de qualquer maneira, e a pandemia aumento minha paranoia”, disse. “No pior cenário possível, que eu cause problemas de saúde a alguém, como uma Covid forte… Eu sou seguidora de uma regra e preciso que as coisas sejam bem claras, do contrário, isso me leva a um ataque de pânico apocalíptico.”
“Regras são exatamente o que ela terá no set de Doctor Who, quando retornar para gravar a sua terceira temporada. Temperatura checada diariamente, protocolos estritos e guias sobre o que ela pode ou não fazer – essencialmente limitada a trabalhar e viver em sua bolha familiar. Jodie, seu marido e filha sempre ficam na mesma casa em Cardiff. “Mal posso esperar para voltar”, diz ela. “A quarentena me lembrou o quanto eu amo meu trabalho”.
Jodie conseguiu o papel de Doutora em 2017 e voltará às telas para o Especial de Natal. Filmado ano passado, o episódio mostra o retorno de alguns Daleks que particularmente não são fãs de datas festivas, e a Doutora fugindo de uma prisão alienígena de alta segurança – em outras palavras, exatamente o tipo de drama alienígena que você esperava de um Especial de Natal.
Ela é notoriamente a primeira mulher a interpretar o Doutor nos 57 anos de história da série, seguida de 12 atores homens antes dela. Regenerações recente são seus amigos, como David Tennant de Broadchurch, Matt Smith de The Crown e Peter Capaldi de The Thick of It, de quem Jodie assumiu o papel. Quando foi escalada para o papel aos 35 anos, ela tinha um currículo abrangendo tudo desde St. Trinian’s e Attack the Block até Broadchurch e Black Mirror. E se tornar a primeira Doutora não a intimidou nem um pouco.
Em primeiro lugar, um homem não teria mais direitos sobre o papel do que ela, “porque está interpretando um alienígena, então o livro de regras está aberto”. Em segundo lugar, ela foi criada em um lar onde papéis de gêneros não existiam. “Minha família era progressista, sem que soubéssemos o que era isso”, ela explica. “Minha mãe e meu pai criaram dois filhos, e meu irmão nasceu primeiro, então eu acabei adotando muito de seus hobbies. Eu jogava críquete porque ele jogava, mas depois ele começou a praticar squash, porque eu gostava. E eu tinha o cabelo curto e espetado dos anos 80, porque eu queria que ficasse parecido com o dele.”
Hoje, ela está usando uma camisa de listras do YMC, e calças largas combinando. Fã de roupas grandes, ela diz que pode ficar “muito animada” com macacões e tênis. “Crescendo, muitas pessoas diziam: “você é uma moleca”, mas eu não era – eu era apenas eu”, diz ela. “Agora, eu amo o fato de que há tanta androginia nas roupas. Adoro poder usar as mesmas coisas que Timothée Chalamet.” Ela também não se incomoda com a ideia de maquiagem. A maquiagem de hoje foi feita às pressas após ela descobrir que a nossa entrevista seria pelo Zoom e não pelo telefone, mas de toda forma, ela disse que não se importa. “Você não consegue dizer que eu me maquiei”, ela grita, examinando seu rosto na tela do computador. “Eu estou feliz por ter feito tanto esforço!”
Embora a política de gênero em fazer seu papel em Doctor Who não fosse um grande problema para Jodie, a ideia da fama vindo de uma série global tão amada a fez parar. Sua atitude ferozmente anti-celebridade (evitando qualquer forma de mídia social) significava que um papel principal no horário nobre era uma perspectiva aterrorizante. “E se isso significasse que você literalmente não poderia andar por aí?” diz ela, com um sotaque de Yorkshire que não oscilou desde que se mudou para Londres no final de sua adolescência da casa de sua família perto de Huddersfield.
“Eu tive a ideia que a fama de Doctor Who seria como aquela imagem de Rhys Ifan em Notting Hill [abrindo a porta da frente para paparazzi] e não é. Se você topar com um Whovian isso fará com que seus dias sejam perfeitos. Há algo emocional, poético e muito humilde em estar no programa, porque você é uma pequena peça do quebra-cabeça de algo tão precioso para muitas pessoas.” Ela consegue se ver interpretando a Doutora por mais tempo? “Eu nem olhei para outro papel desde a Doutora, além de fazer Who Do You Think You Are? no início deste ano. Só de imaginar um ponto final [de Doctor Who] seria muito entristecedor.”
Doctor Who não somente elevou a estatura de Jodie como atriz, mas a deu uma chance de explorar uma direção mais leve. Seus papéis anteriores muitas vezes exigiam que ela tivesse acesso a emoções mais sombrias, desde a desolada Beth Latimer, uma mãe cujo filho foi assassinado na série Broadchurch de 2013, até a esposa de um boxeador com uma lesão cerebral no filme Journeyman de 2017, dirigido por Paddy Considine.
“Nunca me senti como uma atriz metódica”, diz ela. “Com um trabalho como Broadchurch, eles diriam “Corta!” e eu assoava o nariz [de chorar], pegava um café e me acomodava com Olivia [Colman] ou batia um papo com DT [David Tennant] e me livrava disso. Então, não é como se você fosse para casa e estivesse [faz uma cara perturbada], mas eu devo ter, por um muito tempo, existido em um nível bastante elevado [de emoção].”
Ela descreve a Doutora como o oposto desses papéis. O showrunner da série, Chris Chibnall, que também escreveu e criou Broadchurch, fez uma versão sob medida da Doutora para ela; uma Doutora que usaria todos os pontos fortes de Jodie, focando em seus altos níveis de energia – hoje ela fala a um milhão de quilômetros por hora, ri com frequência, gesticula descontroladamente e está constantemente fazendo caretas.
“Você consegue dizer de conversar comigo que essa é minha personalidade”, ela aponta para si mesma, “e não essa [faz cara de triste]. Então, com Doctor Who, foi assim, você quer que eu seja maníaca? Tenho isso na bolsa! Você quer que eu fique inquieta? Ok, brilhante. A ideia de interpretar a Doutora, que no começo era assustadora, tornou-se menos assustadora porque, como pessoa, não estou assim tão longe.”
Outra personagem que ela tem um carinho especial é Anna, de um filme indie de 2016 chamado Adult Life Skills, dirigido por sua amiga Rachel Tunnard. Filmado pouco depois da morte de seu sobrinho de 3 anos, Harry, que tinha Síndrome de Down, ela interpretou uma irmã sofrendo pela perda de seu irmão gêmeo. “Foi emocionalmente a coisa mais difícil que já tive que fazer”, ela diz sobre atuar em uma cena onde Anna finalmente supera o sofrimento. “Parecia que a vida estava imitando arte”.
Três anos depois, Jodie foi convidada a participar do projeto Children in Need, pelo seu amigo e ator Shaun Dooley, que co-estrelou com ela em Broadchurch e Doctor Who. Atores foram convidados a cantar versões cover para o álbum Children in Need, que foi gravado para a BBC 1. Jodie dedicou sua performance de Coldplay – Yellow para Harry.
“Coldplay foi tocado em seu funeral e Coldplay foi tocado ao longo de sua vida muito curta e bela”, ela disse no programa. Ela canta, sua voz cheia de emoção, em frente a uma foto de Harry, enquanto seus pais – seu irmão, Christian, e sua esposa Katie – assistem, e é impossível não sentir a sua perda.
“Eu sou muito reservada, mas às vezes você precisa abaixar sua guarda um pouco”, ela disse. “Não importa o quão bem sucedido você seja – você não consegue comprar saúde. Fazendo aquele programa significava que as pessoas poderiam se conectar e dizer: ‘Essa é a nossa história de família também’”.
Mas além de levantar dinheiro para caridade, isso a levou a conhecer dois membros do Coldplay, quando o guitarrista Jonny Buckland e o baterista Will Champion apareceram de surpresa no estúdio de gravação Abbey Road. “Eu já tinha perseguido o Coldplay antes”, Jodie ri. “Eu fui um figurante no vídeo Charlie Brown em 2011. Fiquei tão envergonhada porque pensei: espero que vocês não se lembrem de mim – aquela pessoa que se voluntariou para participar de graça para ser um figurante, em um trabalho que eu realmente faço.
Como uma criança crescendo em Huddersfield, seus pontos fortes eram o esporte e o drama, ao invés da academia. “Eu sempre fui uma criança com muita imaginação”, diz ela. “Eu era muito boa em auto entretenimento; cada brinquedo tinha sua própria voz.”
Seus pais, Adrian, agora CEO aposentado, e sua mãe Yvonne, que era babá e assistente de ensino, fizeram tudo o que puderam para encorajar suas ambições. “Eu tive sorte que meu sonho de ‘é isso que eu quero fazer quando crescer’ não casou com ‘isso não é um trabalho de verdade’ da minha família.”
Depois de estudar teatro no nível GCSE e deixar a escola aos 18 anos, Jodie trabalhou em uma fábrica local, uma casa de repouso e em bares para arrecadar dinheiro para fazer uma viagem sozinha ao redor do mundo. Ela voltou para casa para ocupar um lugar na Guildhall School of Music & Drama de Londres, onde conheceu seu marido Christian (eles se casaram em 2008 no Arizona, de onde ele é).
No final, seu treinamento em Guildhall acabou alguns meses antes, quando em 2005, ela teve a chance de fazer sua estreia profissional em The Storm, no teatro Shakespeare’s Globe, dirigido por Mark Rylance.
“Que coisa para fazer como seu primeiro trabalho”, ela sorri. “Mark é adorável, engraçado e tem uma ótima energia – foi mágico.”
Assim que a temporada acabou, ela foi escalada, em 2006, para o filme de Roger Michell: Venus, ao lado de Peter O’Toole – foi uma performance brilhante e que a colocou firmemente no mapa. “Eu estava orgulhosa de ‘estar no Globe’”, ela ri, “então eu apareci no meu teste e enganei todo mundo a pensar que eu deveria estar em uma cena com Peter O’Toole. Então você trabalha em Cranford (o drama de época da BBC), e na sala verde somos eu e Michelle Dockery, com quem eu fiz as aulas de teatro, olhando em volta e dizendo: “Isso é emocionante, não é?” Sempre estive ciente de que esses momentos não são garantidos. Eu tive muita sorte; nunca trabalhei com nenhum babaca – a menos que eu seja a babaca”.
A frase “pé no chão” raramente é associada a atores, mas com Jodie você não consegue imaginar outra coisa. Tem um clipe de um episódio em 2018 do Graham Norton onde ela está explicando aos convidados Lady Gaga, Ryan Gosling e Bradley Cooper que a vila onde ela cresceu, Skelmanthorpe, é conhecida pelos moradores por “Shat”. Tem um ‘Shat Pizza’ e um ‘Shat Táxi’, ela dá uma gargalhada, e todos sorriem educadamente. “Uma taça de Sauvignon Blanc e a Whittaker tagarela aparece”, ela ri, revirando os olhos. Você sente que seus amigos de infância, que são seus salva-vidas até hoje, são parcialmente responsáveis por mantê-la com o pé no chão.
“Temos sido um grupo pequeno desde o início”, diz ela sobre seus seis ‘lifers’, ou seja, seus amigos, o nome que ela dá ao seu grupo de melhores amigos, com alguns adicionados ao longo do caminho, como Mandip Gill de Doctor Who. “Uma de minhas melhores amigos, Tor, não tem ideia do que eu faço. Isto é hilário. Ela fica tipo, ‘Aparentemente você estava naquilo’ e eu, ‘Sim, foi um programa bastante famoso…’ É bom ser lembrada que embora o que você está fazendo é a melhor coisa do mundo para você, isso não pode entrar na vida de outras pessoas como se fosse a melhor coisa de suas vidas. Acho que, como atores, às vezes podemos ficar um pouco confusos sobre o quão valiosos nós somos.”
Ela também permanece incrivelmente próxima de seus pais, geralmente passando o Natal com eles. Este ano, porém, como para todos nós, as coisas podem ser um pouco diferentes. “Em um ano normal, sem Covid”, diz ela, “eu iria alternar entre um pequeno Natal em família no Reino Unido e, no ano seguinte, teria um grande Natal americano com a família do meu marido. E todos os anos eu e meus seis lifers esvaziamos nossas agendas e temos um Natal juntos. Obviamente, não podemos fazer isso este ano.”
Jodie pode não saber o que está reservado para o Natal, mas o tempo que passou sem atuar na sua profissão gerou novas ambições? “Eu gostaria de continuar a ter uma carreira imprevisível. Eu amo que meu currículo tenha coisas aleatórias como St Trinian. Quanto aos meus planos sociais, tenho ingressos para o Glastonbury do ano que vem e meu objetivo é usá-los. Mal posso esperar para estar na multidão novamente.” Festas? “Bem, elas podem parecer um sonho distante agora – mas acho que quando você é a Doutora, tudo pode acontecer.′
Doctor Who, ‘Revolution of the Daleks’ vai ao ar no BBC One no começo do ano.
Traduzido de: telegraph.co.uk
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