Dizendo adeus a Sex Education e fazendo sua estreia em Hollywood em Barbie, Gatwa está pronto para embarcar numa jornada pelo tempo e pelo espaço como o 15º Doutor na lendária série de TV Doctor Who. Ele fala sobre se identificar com os personagens mais amados da televisão e como ele planeja reinventar o icônico papel…
De: Alison Rumfitt
Traduzido por: Gabriel Fiel
É um dia muito, muito quente, o primeiro do ano. Nós gastamos uma tarde inteira no estúdio norte em King’s Cross, Londres, nos ventilando e bebendo água para nos impedir de superaquecer. Esse é o grande momento de Ncuti Gatwa. Enquanto ele vem fazendo poses para uma sessão de fotos para a capa da Rolling Stone do Reino Unido, eu fiquei sentado no canto olhando e me sentindo um pouco voyeurístico. É sempre interessante presenciar um artista interagindo com as pessoas que trabalham ao redor dele; revela muito. Gatwa claramente está empolgado em estar aqui. Ele está cheio de energia ao conversar com o fotógrafo, com o time de glamour e, depois que a sessão foi finalizada, comigo. No topo da lista de tópicos que conversamos está Doctor Who – Gatwa foi anunciado como a nova encarnação do icônico protagonista no ano passado. Embora as próximas histórias do seriado ainda estejam bem guardadas, em segredo, eu fui capaz de colher algumas fofocas em sua mais nova estrela.
“Meu Doutor está emocionalmente vulnerável. Ele esconde isso com humor, mas se sente sozinho”, diz Gatwa sobre sua vindoura reinvenção do constantemente mutável Doutor. “Não posso dizer muito mais do que isso; eu não quero estragar nada. Mas ele é tão cheio de energia! Os coitados dos cinegrafistas sofreram para acompanhar o ritmo.”
Escutar Gatwa contar a história de sua escolha é quase como escutar que ele teve um desejo realizado. Um dia ele enviou um e-mail para seu agente dizendo que ele queria um papel parecido com o Willy Wonka ou o Doutor – e apenas uma semana depois ele foi chamado para uma audição para o papel do Senhor do Tempo. Para se preparar, Gatwa passou a semana assistindo todos os episódios de Doctor Who lançados desde o reinício, em 2005. Apesar de já ter apreciado a série no passado, nunca se considerou muito fã. Ele saiu de sua semana de maratona um whovian da cabeça aos pés.
“Eu me apaixonei pela série”, ele diz cheio de entusiasmo, e ele está sendo sincero. Sem sombra de dúvidas, existe uma qualidade especial sobre Doctor Who que é difícil de negar. “Quando você assiste, esquece de todos os seus problemas”, diz Gatwa. “Você vai para o espaço, ou para outra época. Tem aventuras.”
Uma grande parte da história do seriado pós-2005 circula sobre a ideia de o Doutor ter sobrevivido a uma guerra devastadora que dizimou o restante de sua raça. Esse é um ponto do enredo que já foi desfeito e refeito; seu lugar exato no cânone é pouco claro. Porém foi nisso que Gatwa se agarrou, porque nessa história ele foi capaz de ver um reflexo de sua própria vida. Enquanto criança, Gatwa e sua família fugiram de Ruanda, escapando do genocídio da minoria Tutsi. Eles se estabeleceram na Escócia. “Essa pessoa sobreviveu a um genocídio. Essa pessoa se encaixa em todo lugar e em lugar nenhum. Eu sou o Doutor. O Doutor sou eu. Decidi que eu tinha que conseguir esse papel”, comenta.
Ele ainda está tentando acompanhar o ritmo de sua carreira. “A trajetória da minha vida mudou há cinco anos, em 2018”, diz, se referindo a seu primeiro grande papel em Sex Education, da Netflix. “E isso foi apenas uma coisa. Era um trem muito rápido. Eu ainda estou tentando entender o que aconteceu lá atrás, mas… esse trem ganhou um turbo ano passado.”
Essa fama repentina pareceu potencialmente assustadora. “Atores escolhem este trabalho para se esconderem por trás dos personagens. E de repente você está no palco principal. Pessoas sabem que escola você frequentou. Então você tem que focar no trabalho. Esse lado da fama pode ser uma distração”, diz.
Ele parece de fato sentir falta do trabalho em menor escala que o teatro deu a ele. “Me mantinha quente e me embalava de noite, mesmo que eu estivesse quebrado. Mas estou planejando voltar ano que vem, depois de terminar a segunda temporada de Doctor Who”.
Seus papéis no teatro são tão impressionantes quanto seus créditos na telinha e na telona. Em 2016, ele estava em Sonho de uma Noite de Verão – sua peça favorita de Shakespeare – no Globe Theatre. “Eu amo que é sobre fadas e amantes”, diz. “E, é claro, é tão sexual! Nós damos isso para as crianças nas escolas e estão preocupados com drag queens?”
Está claro que existe uma conexão entre essa peça e Sex Education – ambos estão em grupos artísticos, ambos lidam com sexo e relacionamentos, ambos parecem não encaixar com os locais em que vivem e ambos apresenta, nas palavras de Gatwa, “travessuras na floresta”.
No nosso segundo encontro na Soho londrina uma semana depois, mergulhamos um pouco mais fundo em sua época na famosa série. Sex Education é muito franca em suas representações de sexo, e apesar disso os pais de Gatwa são religiosos; seu pai tem doutorado em teologia. Como eles se sentiram com o filho no programa? “Nós não realmente falamos sobre isso, mas eles assistiram”, ele diz. “Eu não queria que eles vissem, mas não pude impedir. E eles me deram todo o suporte, ainda bem. Não é exatamente o pensamento mais confortável saber que a minha mãe sabe como fica minha cara ao gozar, mas… a gente segue em frente.”
Dizer adeus para a série foi agridoce, ele me diz. Apesar de ser grato pela experiência, às vezes ele tinha dificuldades com a direção criativa do show. “Era bem difícil; ela era uma grande série,” ele relembra. “Quando você está contando histórias que nunca foram contadas, existe sempre uma batalha sobre como contá-las. Nem sempre era alegre. Acho que nós superamos essa barreira e demos tudo o que podíamos”, diz Gatwa, que completa 31 anos em outubro, enquanto seu personagem, Eric, estava nos últimos anos da adolescência.
A experiência também deu um despertar rude sobre a realidade de trabalhar na televisão. “Estar nela me levou rapidamente para as desvantagens da indústria. Lembro de um produtor executivo ter me dito que as pessoas brancas não entenderiam meu personagem, Eric, o que me irritou profundamente. Tem uma série inteira lá para pessoas brancas entenderem.”
Gatwa claramente pensa muito em coisas como essa, que podem levá-lo a se sentir em conflito. Um exemplo recente é de quando ele aceitou a oferta de se apresentar na coroação do Rei, parcialmente porque ele sentia um desejo mais forte de estar no palco do que nos sets de televisão ou de cinema. “Eu senti um desconforto, apesar de tudo,” admite. “Nós estamos no meio de uma crise, e lá estou eu indo para uma casa gigantesca para me apresentar. Além disso, você sabe, os diamantes naquela casa… Todos esses pensamentos foram ficando comigo. Mas também era uma oportunidade de celebrar as artes. Eu queria celebrar as artes. Eu queria estar no palco, eu queria interpretar uma peça de Shakespeare.”
Voltando ao tema da religião, quando perguntado se ele se considera religioso, Gatwa pareceu um pouco desconfortável. “Eu tenho fé…”, diz, antes de uma longa pausa. Estou prestes a mudar de tópico quando ele continua: “Eu cresci numa igreja. Meus pais são cristãos de Ruanda. Eu amei crescer na igreja – é uma grande parte da minha identidade. Mesmo assim, há bastante tempo eu perdi meu amor por tudo isso. Eu ainda sinto uma conexão com algo superior a todos nós, apesar disso. Eu não consigo viver minha vida sem isso. Eu tenho que acreditar que alguma coisa vai nos salvar da IA.”
Acredito que a igreja ofereceu uma continuidade ao jovem Gatwa, por mais que a Escócia, um lugar com que ele agora se identifica, seja majoritariamente um país branco. Não havia muitas famílias negras ao redor enquanto ele crescia, muito menos pessoas de Ruanda – e ainda por cima que buscavam asilo. “Foi um isolamento. Tive que me descobrir de uma forma mais profunda” ele diz. “Não que exista uma desconexão entre a comunidade negra britânica e eu, porque eu sou negro e eu sou britânico, porém não havia nenhum outro ruandês. Certamente, não havia nenhum na Escócia. A igreja foi como nós encontramos uma comunidade. Os frequentadores da igreja podem ser as pessoas mais gentis e podem ser incrivelmente cruéis.”
Nesses tempos, Gatwa está mais interessado em astrologia. Como muitos millennials, ela oferece uma estrutura num período particularmente caótico na história (ele é de libra, com lua em gêmeos e ascendente em escorpião, para aqueles que querem saber). Ele tem o aplicativo Co-Star (assim como outros de astrologia) no celular e o confere todos os dias. “Ela provavelmente preencheu uma lacuna que a religião deixou em mim. Eu não podia colocar minha fé num livro velho que tinha sido usado para tanto mal. Eu achei a astrologia tão acolhedora. Ela me ajudou a aceitar minhas próprias trevas, e as trevas de outras pessoas também. Eu tive uma… separação péssima. Acabei ficando sem casa depois. Pessoas podem achar bobo, mas, uma vez que a mágoa passou, uma vez que eu achei uma casa segura novamente, digitar nossos signos estelares e ver todos esses textos descrevendo exatamente qual era o problema entre nós, me levou a ser capaz de perdoar. Entendo seus motivos agora. Eu não esqueço as ações, mas eu posso perdoar os motivos.”
Antes de vê-lo estrear como o Doutor, Gatwa estará na telona em Barbie, o que parece uma progressão curiosa vindo de Sex Education e Shakespeare. Ele interpreta um dos muitos Kens no filme de Greta Gerwig, mas em seu primeiro teste ele estava lendo para um papel completamente diferente – embora não revele qual. Nesse primeiro teste pelo Zoom, ele não tinha script nem sinopse do enredo; apenas uma pequena cena e o conhecimento que o filme seria dirigido por Gerwig e seria estrelado por Margot Robbie e Ryan Gosling. Isso já seria o suficiente para qualquer um querer uma participação no filme, no entanto. Parece que mais ou menos metade de Hollywood realmente queria um papel, julgando pela lista do elenco. A ideia de que todos os atores em ativa estavam sendo ou escalados para Barbie ou para Oppenheimer, de Christopher Nolan, que serão lançados no mesmo dia no Reino Unido, se tornou um meme.
Gatwa talvez tenha sido malsucedido em seu primeiro teste, mas claramente deixou uma boa impressão. Um mês depois, ele foi contatado para ler outro papel. “Isso vai soar tão arrogante”, ele diz, “mas meu agente disse que Greta não conseguia parar de pensar em mim, então fui chamado de volta para fazer uma audição como Ken. O que era muito confuso, porque Ryan era o Ken!” Quando ele recebeu uma cena para sua segunda audição, entretanto, tudo ficou mais claro. Mesmo assim, continuou inseguro. Passou o restante do dia gravando leituras de frases alternativas e enviando-as para o agente de elenco. Então ele soube que Greta queria conversar. “Cheguei aos finalistas tantas vezes”, disse. “Então eu conhecia o diretor e… estava convencido de que havia algo em mim que os desmotivava. Eu tinha certeza de que isso aconteceria novamente.”
Gatwa é tão naturalmente charmoso que é difícil imaginar qualquer um tendo esse tipo de reação a ele. “Eu sempre senti que não era masculino o suficiente, sei-lá-o-que suficiente para esses diretores. Eu posso interpretar isso, mas quando eles veem que eu não sou assim…” ele diz, sem completar o pensamento.
Ainda bem que ele estava errado. “A vibe leão-libra estava ali naquela reunião do Zoom”, diz. Gerwig tinha essencialmente escrito seu nome no script como “Ken Ncuti” logo após sua primeira audição não ter dado resultado. E num ótimo momento de fan-service, Emma Mackey, colega de Gatwa em Sex Education, interpreta uma Barbie. Ela tinha conhecimento sobre o plano de Gerwig esse tempo todo, mas jurou segredo.
Gatwa me conta que o primeiro dia no set de Barbie foi uma cena de dança com todas as Barbies e Kens presentes, incluindo Margot Robbie e Ryan Gosling. “Eu não sabia que eles eram pessoas reais antes disso. Eu achava que eles eram apenas… conceitos”, diz, antes de rapidamente perceber que eles não eram, é claro.
Ele então adiciona uma doce anedota sobre seu tempo com o elenco: “Uma das melhores noites da minha vida foi quando Margot levou todas as Barbies e todos os Kens para ver Magic Mike Live em Londres. Isso foi… Eu não sei como eu consegui filmar qualquer coisa na semana seguinte, minha voz tinha ido embora de tanto gritar. Os vídeos no grupo de mensagens na manhã seguinte foram a melhor parte. A assistente de Greta Gerwig foi puxada para o palco e recebeu uma dança no colo e Greta estava gritando de deleite. Depois disso, nós fomos e dançamos tudo o que precisávamos. Margot é uma anfitriã muito, muito boa. Ela é a rainha das vibes.”
E lógico, interpretar um boneco Ken não poderia estar mais distante de assumir o manto de Doctor Who, e Gatwa admite que os nervos estão começando a afetá-lo.
“Estou muito nervoso. Tenho muitas noites de insônia em que eu fico deitado acordado sentindo as batidas do meu coração”, diz. É difícil imaginar a pressão que ele de repente deve estar sentindo, porém é compreensível, no entanto. Doctor Who é uma série de ficção científica para a família, que está no ar, de uma maneira ou outra, por 60 anos. É também o centro de muito da cultura britânica. Como James Bond, o Doutor é um personagem em que o Reino Unido entende mais de si mesmo, tanto como um ícone de nossos tempos constantemente em mudança como um ser ficcional. A conexão do seriado com a identidade britânica significa que as tensões podem ficar à flor da pele e os fãs podem ser cruéis às vezes, aparentemente superprotetores, porque sentem que o seriado é algo que pertence a eles. Eles também podem ser fanáticos nas maneiras mais imprevisíveis.
“Eu sou o primeiro homem negro a interpretar o personagem. A imprensa britânica pode ser muito maldosa,” ele diz sobre a reação a sua escolha. Porém Gatwa está determinado a se manter firme diante das críticas. “Eu só tenho que focar no trabalho e me manter verdadeiro ao que o Doutor é: um alienígena cientista e maluco que tem aventuras e que se preocupa com todo mundo”, diz.
Felizmente, o time de Doctor Who está ajudando-o a lidar com as pressões que vêm com o novo papel. “Russell T. Davies tem sido incrível, também. Ele me acalma. Ele é tão signo de terra. Eu posso ficar muito ansioso, mas a terapia ajuda, e eles garantiram que eu teria um tempo separado para as minhas sessões.”
Gatwa também invocou suporte de alguns Doutores do passado, e se encontrou com Peter Capaldi, David Tennant e Matt Smith pessoalmente. Ele acabou se encontrando com Smith numa festa antes de ser anunciado no papel e disse embriagado “Estou seguindo os seus passos!” – um comentário que deixou Smith perplexo até Gatwa ser oficialmente confirmado como o novo Doutor. Gatwa me diz que Tennant criou um grupo de mensagens com alguns dos atores anteriores para manterem contato, e todos ofereceram suporte e conselhos de como lidar com a imprensa. Afinal, as únicas pessoas que realmente sabem como é ser o Doutor são aquelas que já foram o Doutor. Uma vez escalado, você sempre será uma parte da longa história do show.
A série retornará na BBC One (e no Disney+ em outros territórios) em três especiais chegando neste novembro, todos – pelo que sabemos – estrelando David Tennant mais uma vez. O primeiro episódio de Gatwa será um especial de Natal com previsão de lançamento em dezembro.
Doctor Who é sobre se reinventar e, com Gatwa, essa reimaginação audaciosa pode ser percebida em sua interpretação estética do excêntrico alienígena viajante do tempo. Moda pode não ser a primeira coisa que uma pessoa associa a Doctor Who, mas o que o Doutor veste é uma parte intrínseca da série. O longo cachecol de Tom Baker, o terno risca de giz de David Tennant; essas são coisas que as pessoas imediatamente associam ao seriado. Todavia, o Doutor de Gatwa pode ser o primeiro com consciência de moda. “O dia que Russell me convidou para conhecer todo mundo, eles me perguntaram que tipo de roupa eu queria. Eu mostrei uma coleção da Ralph Lauren em parceria com as Faculdades Historicamente Negras na América”, ele diz. “Eu amo aquelas peças, elas são tão burguesas e tão Black. Mas aí eles me perguntaram o que mais, porque eles estiveram pensando em várias roupas, praticamente uma diferente a cada semana. O que é novidade! O Doutor viajou por todo o tempo e espaço; ele deve ter uma armário irado.”
Não que os Doutores anteriores estivessem mal vestidos, é preciso dizer. “Eu amo as roupas do Jon Pertwee, o Terceiro Doutor. Jaquetas de veludo adoráveis e camisas com babado. Eu sinto uma conexão com ele, nossos Doutores são os únicos que se vestem como vadias”, ri.
A ideia de múltiplas roupas levou a um divertido ciclo de imprensa onde o Twitter é regularmente alimentado com ensaios do Doutor e sua companion num estilo completamente novo em cada leva de fotos. O mais notável de todos até agora foi um look dos anos 60, meio swing, com Gatwa vestindo um terno azul listrado e com um penteado afro. “Os departamentos de cabelo e maquiagem têm sido incríveis”, ele exclama. “Claire Williams e minha própria artista de maquiagem, Bella, que é uma amiga de longa data, trabalharam tão bem juntas na criação dos meus visuais. Originalmente nós não teríamos o afro, mas Bella me convenceu e eu fico muito feliz que ela tenha conseguido. É como uma injeção direto na veia. É uma declaração – o Doutor é negro, porra.”
Texto: Alison Rumfitt
Fotografia: William Arcand
Direção de moda: Joseph Kocharian
Figurino: Felicity Kay
Preparação: Bella Arghiros, com ajuda de Lisa Eldridge, Tata Harper, Glossier e Charlotte Tilbury
Cabelo: Chris Okonta
Assistente de fotografia: Pietro Lazzaris
Assistentes de moda: Dani Kleinman e Flo Thompson
Assistente de maquiagem: Willow Ropner
Traduzido de: Revista Rolling Stone UK