Quando saiu a notícia de que Chris Eccleston estaria lançando uma biografia, os whovians teoréticos da conspiração já ficaram ouriçados esperando grandes revelações dos bastidores da série e os porquês de Ecclie ter pedido as contas após uma única temporada. Se você faz parte desse grupo, sinto lhe informar mas esse não é o seu livro.
I Love The Bones Of You é muito mais um paralelo entre a vida de Chris e seu pai, Ronnie, bem como um grande ensaio sobre saúde mental, masculinidade e discriminação.
A vida de Ronnie e Chris é muito semelhante: ambos nascidos no norte da Inglaterra, criados para a roda nasce-cresce-arruma emprego numa fábrica-casa-tem filhos-vai ao pub às sextas-futebol aos domingos-morre. Mesmo sendo um homem com sede de conhecimento, que gostava de ler e tinha um dicionário de estimação, Ronnie foi tragado por essa vida. O filho, porém, conseguiu sair desse ciclo – e é aqui que o assunto masculinidade tóxica entra: Ronnie é retratado como um homem sensível, com uma veia artística que foi sufocada por não ser vista como “coisa de homem” nos anos 40/50.
Chris é o que é por conta de seus pais e de seus irmãos gêmeos. Mais novo, ele se via como o elemento extra numa casa de dois pares – os pais se bastavam, os irmãos se bastavam e ele era o “elemento estranho”. Se por um lado se sentir solitário incentivou a imaginação do pequeno Chris, a ponto dele ter episódios de projeção extracorpórea durante a infância, também criou grandes problemas de imagem – a dismorfia vem desde os 7 anos de idade e se estende por toda a vida do ator.
Mas o norte do livro é mesmo a saúde mental de pai e filho. Os Eccleston são uma família com longos históricos de doença mental, mais especificamente demência senil e depressão. Ronnie sofreu com demência senil por dez longos anos; Chris sofre com depressão desde os vinte anos, dismorfia e anorexia desde os sete. Há cerca de quatro anos o ator simplesmente teve um surto (tendo como gatilho o divórcio e a consequente separação dos filhos pequenos) e se internou, por conta própria, em um hospital psiquiátrico.
E muito do que lemos é uma análise de vida de alguém que tenta voltar pros eixos, retomar o controle da própria vida e pôr pra fora tudo o que estava entalado. Em nenhum momento ele cita nomes de quem o prejudicou, mas um rápido trabalho de detetive no Google te dá as respostas. Já quem o ajudou é citado e devidamente elogiado e agradecido. É também um testamento em vida para os filhos, Albert e Esme – e quem segue Chris Eccleston no Instagram sabe o quão importante essas crianças são pra ele.
Falando especificamente dos trabalhos que ele fez, a maior parte dos elogios vai pra Our Friends In The North – minissérie da BBC de 1996 que ele fez com Daniel Craig e que alavancou sua carreira (você acha os 9 episódios no YouTube) – The A Word e The Leftovers. Menções honrosas também a Jude, Cova Rasa, Hillsborough, Flash And Blood, Let Him Have It e Cracker.
Já a carreira em Hollywood é praticamente ignorada, com exceção de uma passagem: um dia um fã o abordou perguntando se ele era o Raymond Calitri, de 60 Segundos. Ecclie disse que sim, e o rapaz disse que adorava o filme. Chris fez uma cara de “tá falando sério?” e o rapaz explicou: “60 Segundos é tão ruim, mas tão ruim, que é bom” (nota pessoal: eu também acho isso). A partir dali ele reviu sua relação com o filme.
Falando especificamente de Doctor Who, temos poucas informações novas. Já sabíamos, até por entrevistas da época, que foi o próprio Eccleston quem mandou email ao Russel T. Davies pedindo pra fazer o papel, e que ele não era fã da série, só assistindo quando era episódio de regeneração, por achar fascinante como um personagem se mantia mesmo com a troca de ator. Ecclie elogia muito Steven Moffat, o próprio RTD, Billie Piper e os diretores Euros Lyn e James Hawes, mas não cita o nome do diretor que causou o problema todo (dica: 99,9% de certeza que é o diretor de Rose, Aliens of London e World War Three). Mas dois momentos são de se acabar de chorar:
– dois capítulos chamados Doctor Daddy, que nada mais são que Chris apresentando Doctor Who pros filhos (a primeira parte é sobre Rose e a segunda sobre Dalek, com direito a Esme chamando os vilões de Garlicks);
– como a presença e o carinho dos fãs de Doctor Who vêm ajudando na recuperação pós-surto, o que o levou a mudar de pensamento sobre convenções.
I Love The Bones Of You é uma biografia única, mais voltada para o que o autor é, e não o que ele fez. Um exercício de autocrítica (e, em alguns momentos, reconhecimento de auto sabotagem) pouquíssimas vezes visto antes. Se você sofre de algum tipo de doença mental – ou é/foi cuidador de alguém que sofre de doença mental – vai se reconhecer em muitas partes. Se você lê em inglês, recomendo demais.
Em tempo: pra saber mais sobre o livro, procure uma entrevista de Chris para o Build Series – London no YouTube. E para maiores informações sobre a parte de Doctor Who, procure pelo painel do ator na NYCC/2019.