REVIEW: The Robot Revolution

A revolução robô é um golpe, e isso é bom.

Imagine: você está em sua própria casa — ou melhor, em uma casa geminada alugada. É tecnicamente seu lar, mas nem mesmo é sua propriedade. Você, uma pessoa racializada, dividindo o lugar com duas outras pessoas brancas. Sua noite muda completamente depois de um barulho estrondoso no quintal. Autoridades chegam arrombando a porta, quebrando o que não é deles nem seu, mesmo você explicando que o seu senhorio (e aqui eles usaram a palavra carregada de sentido landlord — não proprietor) não é dos mais compreensivos. Sem direito de defesa, sem chance de contestar, você é arrancada de seu lar, ameaçada de morte, coagida, sequestrada. Enquanto é levada, sua cabeça gira em preocupações: e a sua família? E o gato da sua colega de quarto, morto pelas autoridades? Você desaparece na frente dos seus vizinhos — e sabe-se lá quando, ou se, será vista novamente.

Belinda Chandra (interpretada por Varada Sethu) está cercada por dois grandes robôs vermelhos e prateados do episódio “Robot Revolution” de Doctor Who. Ela parece assustada e confusa, segurando um certificado de nomeação de estrela em meio aos destroços da parede arrombada de sua casa. A cena ocorre à noite, com iluminação dramática e visual que mistura o absurdo cômico dos robôs com o clima tenso da invasão.
Robôs e Belinda Chandra (Varada Sethu) – Lara Cornell/BBC Studios/Disney/Bad Wolf

Doctor Who, claro, apresenta tudo isso por meio de um filtro lúdico: com robôs fofos, uma trilha sonora romântica e até certo tom de comédia. Estreando a segunda temporada em parceria com a Disney, o episódio começa com uma tarefa importante: apresentar-nos a uma nova companheira para o Doutor de Ncuti Gatwa.

O episódio se abre com uma cena ambientada 17 anos antes dos eventos principais. Dois adolescentes, Belinda Chandra e Alan, estão em um encontro que mistura timidez, constrangimento e a inexperiência típica da idade. É nesse momento que conhecemos Belinda — interpretada com uma verdade cênica sublime por Varada Sethu. Como presente de aniversário, ela recebe de Alan um “certificado de posse” de uma estrela nomeada em sua homenagem. O mais interessante está nas entrelinhas desse momento. Desde o início, há sinais de que Alan (Jonny Green) é controlador: ele demonstra frustração quando ela rasga o papel de presente; ele não respeita o pronome de tratamento desejado pela protagonista — ela prefere não ser chamada de “miss” ou “senhorita”, mas ele insiste, ignorando seu desejo. A cena já planta, discretamente, a primeira camada dos temas que serão abordados neste episódio: controle, consentimento, respeito à autonomia de outrem e, principalmente, a subcultura incel.

Corta para 17 anos depois. Vemos a estrela, a mesma que foi “batizada” com o nome da protagonista anos atrás. Algo sai dessa estrela e viaja em direção à Terra. A Tardis aparece na frente de um hospital, onde Belinda trabalha arduamente como enfermeira. O Doutor tenta encontrá-la no hospital, mas os funcionários se recusam a fornecer qualquer informação. Belinda, exausta, no fim de seu expediente, volta para casa. Durante a noite, dois robôs gigantes invadem sua residência, usando o presente de Alan como prova de que ela é a rainha do planeta Miss Belinda Chandra-1, e a sequestram para levá-la até lá. O Doutor chega tarde demais, apenas para vê-la sendo levada.

Logo, o episódio revela mais da trama: o planeta é governado por robôs subservientes a uma entidade chamada “AI Generator” — mais uma vez, Davies deixa claro sobre o que está comentando. Uma sociedade controlada por uma inteligência artificial generativa. Humanoides — aqui chamados de senhoritabelindachandreses, como Sasha 55 (Evelyn Miller) — vivem oprimidos, tentando resistir. O Doutor, disfarçado de historiador, ajuda Belinda a perceber que está se comunicando por código — os robôs não conseguem ouvir cada nona palavra de uma frase, então ele usa essas brechas para passar instruções escondidas no meio do discurso. Com a ajuda dos rebeldes, Belinda tenta escapar — mas não sem perdas. Sasha 55, amiga do Doutor naquele planeta — alguém que claramente confiava nele, e com quem ele compartilhava planos de ver as estrelas — morre durante a tentativa de fuga.

O episódio faz uma virada importante e muito bem pensada: o problema central não era os robôs ou o gerador de IA — era quem estava no comando. No final, descobrimos que não se tratava de uma revolução dos trabalhadores servis daquela sociedade — os robôs —, mas de um golpe arquitetado por Alan, o mesmo incel da Terra, que, com um pedaço de papel que lhe dava a “propriedade” de uma estrela, cooptou uma sociedade inteira e a transformou em instrumento de dominação. O garoto controlador do passado agora manipula um planeta inteiro. E é aí que o episódio abre espaço para outra camada de leitura: um comentário sobre o trans-humanismo. Alan representa figuras que, no mundo real, ao se enxergarem como superiores, ao terem grande poder concedido pelo dinheiro e pela tecnologia, abandonam sua humanidade. O desejo supera o mero de controle: é de conversão. Uma imposição de sua nova forma sobre os outros, sem consentimento, como um evangelista da supremacia tecnológica, compartilhando um mesmo pensamento algoritmicamente construído. Até Alan sente a dor desse algoritmo construído por ele, e mesmo assim o impõe a outrem.

O embate final entre Belinda e Alan se dá por meio de um dispositivo clássico da ficção científica: dois objetos idênticos coexistindo em tempos diferentes. Quando Belinda toca seu certificado original naquele que os robôs cultuam como relíquia fundadora, a lógica temporal se desfaz. O episódio não tenta explicar em detalhes o que acontece — evoca o já célebre termo timey-wimey stuff, numa referência direta à fala do Décimo Doutor. E o efeito é esse mesmo: colapsar as regras do tempo e do espaço absurdamente, mágica e absolutamente doutrinada à estética do nonsense sci-fi. Nesse momento, o episódio entrega uma estética psicodélica deslumbrante.

O resultado? Alan é apagado da existência. Literalmente. Como se nunca tivesse sido concebido. E com isso, Davies parece fazer uma afirmação clara: pessoas com poder absoluto, fundado na posse e na dominação, não deveriam existir. A reação do Doutor também é significativa: essa figura que tantas vezes hesitou diante da destruição de seus inimigos aqui não só aceita o desfecho, como o celebra.

The Robot Revolution é um começo promissor, sintetizando muito do que a nova fase de Russell T. Davies tem a oferecer de mais interessante. Os temas abordados no episódio ecoam de maneira consistente a linha que Davies vem traçando desde The Giggle: críticas sociais sobre a cooptação das massas, machismo, racismo e o papel da tecnologia em uma sociedade fragmentada e dividida em bolhas.

Além disso, a morte dos companheiros volta a ser um tema, como levantado por The Giggle, reforçando o tom trágico da presença do Doutor: sua chegada muda vidas — mas frequentemente também as destrói. The Robot Revolution retoma esse peso emocional com a perda de Sasha 55, ao mesmo tempo, em que amplia o debate ao colocar o próprio Doutor sob questionamento. Em um dos pontos altos do episódio, Belinda confronta o Doutor por coletar seu DNA sem consentimento — um gesto que, na lógica sci-fi da série, costuma passar despercebido, mas aqui é tratado com a seriedade ética que merece. Ela não hesita em dizer que o vê como alguém perigoso, e deixa claro: não sou uma de suas aventuras. A cena expõe a complexidade moral do personagem e rompe, ainda que momentaneamente, com a aura de infalibilidade que o cerca, ao mesmo tempo, em que reforça que Belinda não tem medo de contestá-lo.

Davies reafirma aqui o que a ficção científica faz de melhor: levantar perguntas difíceis, responder sem medo de arriscar, representar sem estereotipar. Não se trata somente da presença de personagens racializadas, mas da construção de narrativas que reconhecem — sem suavizar — o peso e as implicações dessas identidades no mundo. E se engana quem acha que Davies recai no clichê de racializar somente personagens não brancos enquanto trata personagens brancos como o “normal”. Pelo contrário: figuras como Alan, nesta nova era, têm sua identidade racial branca explicitada com ainda mais ênfase — e são igualmente colocadas sob o olhar crítico da narrativa.

O episódio termina com um gostinho de “quero mais”, levantando perguntas interessantes e apresentando, com sucesso, uma nova companheira cheia de personalidade. Há ainda detalhes que podem se desdobrar nos próximos episódios — como o Doutor vestindo uma roupa diferente enquanto procura Belinda na Terra, em comparação ao traje que usa ao persegui-la pela Tardis antes de chegar ao planeta. Não vemos o motivo pelo qual o Doutor procura por Belinda em primeiro lugar. Além disso, a Sra. Flood quebra novamente a quarta parede, falando diretamente ao público para esquecermos que a vimos interagir com Belinda — aparentemente sua vizinha. Esses detalhes prometem ganhar novas proporções narrativas ao longo da promissora segunda temporada de Doctor Who.

Imagem de capa: Robot and Belinda Chandra (Varada Sethu) – Lara Cornell/BBC Studios/Disney/Bad Wolf

Texto de Ycaro Gabriel

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