REVIEW: Lucky Day

Dia de sorte, monstros nunca são apenas monstros.

Lucky Day se concentra na história de Ruby e seu novo namorado, Conrad, com breves aparições do Doutor — algo parecido com 73 Yards da última temporada. O foco dessa história em particular é bem claro: é mostrar o que acontece com um companheiro na sua vida pós-Doutor. A resposta? Você jamais será o mesmo.

Ruby Sunday (Millie Gibson) – Lara Cornell/BBC Studios/Disney/Bad Wolf

A Tardis se materializa no réveillon de 2007. O Doutor está em missão com Belinda: precisam posicionar um dos dispositivos temporais que aparecem em outros episódios da temporada, para voltarem a 24 de maio de 2025. É nesse momento que ele vê uma criança, Conrad, paralisada pelo absurdo que acaba de testemunhar: a Tardis surgindo do completo nada no meio da cidade, rompendo a normalidade da virada de ano. O Doutor se aproxima, entrega uma moeda ao menino e diz: “É seu dia de sorte.” Conrad, atordoado, corre para contar à mãe o que viu — só para receber um tapa no rosto e um aviso de que está estragando a noite dela.

Belinda Chandra (Varada Sethu), o Doutor (Ncuti Gatwa) e o jovem Conrad (Benjamin Chivers) – Lara Cornell/BBC Studios/Disney/Bad Wolf

Começar o episódio pela visão de um garoto que presencia, com deslumbre, em 2007, a aparição do Doutor, não é coincidência. Dia de Sorte aposta na metalinguagem para comentar sobre o próprio espectador de Doctor Who. Isso fica mais evidente, quando vemos Conrad 17 anos depois, em 2024, reencontrando o Doutor: ele entra em um local que remete diretamente ao primeiro episódio do retorno da série, em 2005, Rose. Como se ele estivesse, finalmente, participando daquilo que sempre observou de fora, participando de uma aventura do Doutor.

Em seguida, naquele local, vemos o Doutor e Ruby — aparentemente após The Devil’s Chord — enfrentando os Shreek: monstros com um visual clássico do ser mitológico troll, com o comportamento de marcar suas vítimas — nesse caso com feromônios — e atacar. Só nesse detalhe já podemos notar uma minúcia de analogia. O troll na internet tem o mesmo comportamento, eles te marcam numa rede social e te atacam. Quando uma série sai uma vez por ano, então eles aparecem uma vez por ano para atacar. O Doutor e Ruby devolvem um desses trolls ao seu universo de origem, enquanto Conrad observa tudo à distância, sem nenhuma interação, num certo voyeurismo, exatamente como um espectador da série. Ele segue a dupla, e quando Ruby está para entrar na Tardis, ele fotografa Ruby, como se fosse um fã de Doctor Who fotografando um set de filmagens. Ruby parece vê-lo de relance, ela responde com um amigável “Olá”, ele não responde de volta, se esconde. Após fotografá-la, ele publica sua imagem online sem o seu consentimento, com a pergunta: “Alguém conhece essa mulher?”.

Posteriormente, essa imagem leva Ruby ao podcast de Conrad, onde ela compartilha histórias sobre o Doutor e a UNIT. Ela ressalta a importância deles naquele universo ficcional. Após o podcast, ele a convida para tomar um café, tentando se aproximar romanticamente dela. Algo digno de atenção acontece nesse momento — enquanto Ruby fala sobre o Shreek, a realidade ao redor começa a se alterar, refletindo aquilo que ela diz. Pode ser somente um recurso estético, ou mais uma sugestão de que Ruby, como vimos na primeira temporada, tem algum tipo de poder de moldar a realidade. Conrad parece perceber. Mas o que importa e chama atenção nessa cena é o primor da direção desse episódio. É um blocking cuidadoso, sedutor e, por muitas vezes, não convencional para um formato de série — que costuma abusar somente de plano e contraplano, blockings mais padrões, sem muitos movimentos de câmera, nem muitas experimentações estéticas e de linguagem. Mas nesse episódio, em especial — e até na temporada como um todo, vemos uma preocupação especial nesse sentido, fazendo com que essa temporada se destaque até mesmo da primeira temporada depois do acordo com o serviço de streaming Disney+.

A cena continua: ele diz que Ruby é uma boa contadora de histórias depois de um salto de volta à sua realidade. E até conseguimos ter uma leitura metalinguística desse momento, como se, na visão de Conrad, ele fosse o único a enxergar uma verdade oculta desse universo ficcional, o único capaz de ver através do véu lúdico da série.

Adiante na conversa, Ruby entrega o antídoto do ferormônio do Shreek a Conrad, e pede que ele tome mais tarde, já que o remédio dá sono. Enquanto Ruby conhece Conrad, vemos gradualmente o quanto ele é obcecado pelo Doutor. Suas conversas com Ruby são sempre sobre ele. Ele quer ser tão legal quanto o Doutor. Talvez mais. Isso também não é inédito: na machosfera, o respeito verdadeiro costuma estar reservado aos outros homens. As mulheres são tratadas como objetos, recompensa, meio para se conseguir respeito, etc. E Conrad não vê Ruby diferente disso. Mesmo que o episódio já comece a pincelar sutilmente esses detalhes na personalidade de Conrad, o personagem tenta a todo custo demonstrar certa vulnerabilidade, mesmo que seja falsa. Como quando afirma que sua mãe faleceu de câncer no fígado. Aqui, fica o ponto de interrogação: sabemos que sua mãe está viva, mas essa poderia ser a realidade em que ele escolheu acreditar?

O relacionamento dos dois começa a se estreitar, e Conrad a convida a conhecer alguns de seus amigos. Ruby aceita e eles vão para um bar num vilarejo inglês. Sua avó a avisa: já passou por lugares assim, e não gostou dos olhares. Assim que ela entra na cidade, algo parece estar errado: luzes falhando por todos os lugares. No final, tudo começa a desandar. As luzes elétricas falham de vez — já apresentadas no episódio como sinal de que os Shreek estão escapando do pequeno universo deles, e entrando naquele.

Ruby liga para Kate, e devo dizer que é uma das melhores aparições da personagem. A gente vê a UNIT funcionando sem o Doutor por perto, e é interessante de se ver. Há uma sugestão discreta de que Kate está num relacionamento com um dos agentes. Ela menciona que Mell está em Sydney observando um porto, amarrando provavelmente o episódio ao spin-off The War Between the Land and the Sea. Pela falta de indícios de shreek, Kate aconselha Ruby a descansar. Ela sabe o que é viver com a sombra do Doutor. E Ruby acaba verbalizando num momento: está lidando com estresse pós-traumático. Esperando que tudo dê errado, o tempo todo, esperando sempre pelo Doutor retornar.

A tensão sobe. Um amigo de Conrad desaparece. Uma velhinha grita que “um demônio assustou seu cãozinho”. A energia cai. E então, do lado de fora das janelas do bar, os sons dos Shreek se aproximam. É nesse momento que Conrad confessa: não tomou o antídoto. E talvez tenha colocado todos em risco. O motivo? Querer ser tão bravo quanto o Doutor.

Ruby aciona a UNIT, e logo tudo se revela uma grande farsa. E é aqui que os comentários de metalinguagem começam a emergir com força. Conrad, finalmente, abandona a máscara e expõe seu verdadeiro papel. Ele narra, com um certo desprezo, como foi tedioso e trabalhoso ter que conhecer Ruby, ouvir Ruby, fingir interesse. E revela: ele faz parte da Think Tank, uma organização dedicada a “expor a verdade” sobre a UNIT — como se fosse o único bastião lúcido em meio a uma suposta conspiração universal. Fica evidente o comentário metalinguístico que o episódio traça: Conrad vê esse universo ficcional como uma grande conspiração mentirosa. Os alienígenas seriam atores com fantasias, pagos com dinheiro público — a BBC, produtora de Doctor Who, é uma empresa estatal. Entre vários outros comentários, por vezes ofensivos, que traçam um paralelo claro com uma parte muito específica do público da série, há os que acusam Doctor Who de estar a serviço de uma agenda política. Em um desses comentários metalinguísticos, muito cientes de si, Conrad solta a afirmação que ele sabe que “monsters are cover stories for something else”, em tradução livre: “monstros são histórias criadas para encobrir outra coisa.”

Esse é o ponto onde Lucky Day brilha. Os monstros nunca são somente monstros. Os Shreek têm a aparência perfeita de trolls e funcionam como um paralelo evidente aos verdadeiros trolls da internet que o episódio pinta. Não existem dois monstros da semana em Doctor Who, ambos são o mesmo arquétipo, e agem da mesma maneira: primeiro te vê de longe, de relance, então te marca, te persegue, brinca com seus sentimentos e depois tenta te destruir. Depois disso eles retornam ao seu próprio pequeno universo, ou bolha. A diferença é que um dos personagens tem um microfone e um canal de podcast, mas ambos são trolls.

E ao desmascarar Conrad Clark, o episódio revela um comentário interessante: como a figura do troll às vezes pode ser sedutora. Ele pode cooptar até mesmo a atenção de verdadeiros companheiros do Doutor. Ele vai utilizar tudo que tem para te manipular sentimentalmente com mentiras, e vai lucrar muito com isso. Ele expõe e ameaça sob o pretexto de uma “verdade” que no final se mostra como medo de lidar com a própria realidade em que vive. Ruby nesse episódio pode ser lida como os verdadeiros companheiros do Doutor. O público apaixonado por aquele universo, que enxerga o papel social que ele tem. E Conrad? Ele molda sua personalidade para seduzi-la, trai sua confiança, a pinta como mentirosa e por fim a coloca em perigo ao divulgar seu endereço para milhares de seus seguidores inflamados pelo seu discurso e até aponta uma arma para ela. Conrad ameaça esse espectador, o ataca. A alegoria se fecha: a figura do monstro encarna o relacionamento tóxico em sua forma mais insidiosa. O relacionamento tóxico dessa parte do público com a série Doctor Who.

Esse tipo de leitura não surge do nada. Em 1996, Jeffrey Jerome Cohen escreveu que “The Monster’s Body is a Cultural Body” — ou seja, o corpo do monstro é um corpo cultural. Anos depois, em 2007, Noël Carroll argumentaria que monstros funcionam como encarnações das ansiedades sociais de uma época: medo da ciência, do corpo, da sexualidade, da política, do “outro”. Eles nunca são somente um ser físico — são metáforas ambulantes que apontam para fora de si. Medo, desejo, tensão social — tudo isso se encarna na figura do monstro.

Pete McTighe, roteirista do episódio, parece entender isso perfeitamente. E vai além: subverte o conceito ao colocar um humano branco, carismático, sedutor e ressentido, como o verdadeiro vilão do episódio. Após apontar uma arma para Ruby, e Kate liberar o Shreek para caçá-lo — algo que ela faz sabendo que o Doutor a impediria —, Conrad mente para parecer que vai mudar, que vai deixar de mentir. Mas retrocede na primeira oportunidade, e então recebe a mordida de um Shreek.

No final do episódio, temos mais uma breve aparição do Doutor. Ele traz Conrad — que no final fica preso à sua Tardis. Nesse momento, vemos brevemente uma parte mais sombria do Doutor, um monólogo forte. Doctor Who evita incentivar fantasias de poder masculino — esse mito de que a força e muita das vezes violência de um homem pode resolver as coisas, conceito amplamente explorado por gêneros como o de super-heróis e conhecido do público. Conrad é o retrato exato desse tipo de fantasia e o Doutor tem uma visão bem definida sobre ele: uma figura patética, covarde. Ao falar diretamente com esse espectador, é como se o Doutor estivesse falando com todo um grupo que ele representa. Ao convidá-lo para dentro da Tardis, o Doutor tem um recado: você precisa ser especial para estar dentro dessa fantasia. O Doutor está ali para as pessoas comuns, para que elas tenham um dia melhor. A direção marca esse momento muito bem com um plano holandês, famoso por causar certa estranheza, para ressaltar que a série está tratando de um problema quase alienígena àquele universo. O Doutor expõe Conrad como alguém que usa ruído e mentira como arma — um símbolo perfeito para o pânico moral que se espalha por bolhas digitais, e assim que esse momento acaba, o plano holandês também some.

Conrad pergunta se o Doutor já conheceu Belinda Chandra — o que provavelmente o coloca no caminho de encontrá-la, e a conversa termina com Conrad expulsando o Doutor do “seu planeta”. Uma fala carregada de sentido, que pode ser lida como uma alusão ao ódio a imigrantes, considerando que o Doutor adotou a Terra como lar, e a ascendência do ator que o interpreta.

No final, a Sra. Flood tira Conrad da prisão, sugerindo que ele retornará. Não seria surpresa se, em algum momento, ele se mostrasse como um adversário maior. O episódio propositalmente deixa parte do mistério de como ele se tornou quem é, sem explicação. Se ele tentasse transformar a realidade ficcional de Doctor Who em uma série de TV — e por isso estaríamos vendo tanta quebra de quarta parede e metalinguagem desde The Star Beast, eu não ficaria surpreso.

Nos resta aguardar novos episódios e ver onde tudo isso vai dar.

Texto de Ycaro Gabriel

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