REVIEW: The Story & the Engine

Você está em sua comunidade, vivendo a vida normalmente, quando de repente é abduzido, sequestrado. De repente, está a serviço de um homem ressentido, que te obriga a trabalhar para ele, não importando se você vive ou morre. Você recebe o suficiente para sobreviver, nada além. Mais do que a sua força de trabalho, você é afastado de sua família, de seus sonhos, de seus objetivos. Também se apropriam de sua história, sua vivência, sua cultura, além da força de seu trabalho.

Parece muito com a escravidão, porém tem mais. Suas histórias estão alimentando uma aranha que precisa delas como combustível para se locomover na World Wide Web. Para quem não conhece, o termo spider (aranha, em inglês) remete a algo muito específico da inteligência artificial generativa: o robô que se alimenta percorrendo a internet em busca de histórias, escritas, feitas por seres humanos.

E essa é uma das muitas leituras e camadas que esse episódio proporciona. The Story & the Engine é uma narrativa com uma perspectiva humanista sobre ressentimento e perdão, construída por meio de uma metalinguagem que reflete sobre o próprio ato de contar histórias. Tem camadas sobre escravidão, escravidão moderna, por discutir, além do ato de contar histórias, os motores ou as formas que usamos para contá-las. O título já sugere essa dualidade: “A História e o Motor”.

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O episódio inicia-se com uma sequência ambientada na barbearia de Omo, em Lagos. Omo (Sule Rimi) narra uma história de sua juventude, quando sua aldeia foi consumida por um incêndio e um homem misterioso, vindo de uma caixa azul, apareceu para ajudar. Enquanto ele conta, as paredes da barbearia ganham vida com animações que ilustram sua narrativa — um recurso estético sublime. Ao concluir, todos na barbearia observam ansiosamente uma luz vermelha que, ao se tornar verde, indica que a história foi “aceita”. Esse ritual sugere que contar histórias é essencial para manter algo funcionando na barbearia. Logo após, sirenes soam e o local começa a tremer, com os presentes clamando: “O Doutor, precisamos dele agora. Precisa ser alimentado!”. A introdução da série começa a ser vista nessa parede, e logo toma conta da tela.

Enquanto isso, o Doutor (Ncuti Gatwa) e Belinda Chandra (Varada Sethu) estão a bordo da TARDIS, tentando retornar para Londres em 24 de maio de 2025. Para isso, precisam recalibrar o Vortex Vindicator, um dispositivo que requer posicionamento em locais específicos para coletar dados. Eles chegam a Lagos, Nigéria, em 2019, para posicionar o dispositivo. Ao chegarem, o Doutor expressa seu apreço por Lagos, destacando como, em sua nova forma, ele é tratado como “um dos seus”, algo que não ocorre em todas as partes da Terra. Belinda compartilha que sua avó fazia o mesmo por ela, levando-a para a Índia, a lugares onde se sentia acolhida.

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Durante a visita, Belinda diz ao Doutor para aproveitar a oportunidade e levar o tempo que precisar para visitar seu antigo amigo e barbeiro, Omo, em sua barbearia, Omo’s Palace. Belinda entende o sentimento do Doutor, e essa conexão entre duas pessoas racializadas reforça o vínculo entre os dois personagens, porém ela permanece na TARDIS. Ao caminhar pelas ruas movimentadas de Lagos, o Doutor é calorosamente recebido pela comunidade local, e sentimos a importância desses espaços comunitários na construção da identidade e do acolhimento.

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Não surpreende que esse episódio seja escrito por um grande artista negro. Inua Ellams é um artista multifacetado e conhecido pela sua poesia e dramaturgia. Esse episódio é poético em sua narrativa, e rico de significados, e se passa em um único cenário em sua maioria. Bem parecido com uma peça de teatro. O trabalho mais celebrado de Ellams é a peça Barber Shop Chronicles, em tradução livre “Crônicas da Barbearia”, e ele utiliza esse background aqui também. Como um homem negro, posso afirmar que uma barbearia é um local de pertencimento muito relevante para mim, e acredito que para muitos. Encontrar a barbearia certa, que entende do seu cabelo, da sua textura, da sua vivência, é algo ímpar. É um local para socializar, para descobrir lugares para visitar, para fazer amizade e dividir vivencias. Cortar o cabelo com pessoas brancas não é o mesmo.

Dentro da barbearia, o Doutor encontra Omo e outros homens desaparecidos, todos forçados a contar histórias. O Barbeiro, figura misteriosa que assumiu o controle do local, trabalha ao lado de uma mulher chamada Abby, que o Doutor reconhece, mas não consegue identificar de imediato. O Barbeiro afirma que somente ele e Abby podem sair do ambiente, mantendo os demais presos, forçados a alimentar uma máquina com suas narrativas para manter tudo funcionando.

O Doutor acaba sendo capturado e forçado a participar desse ciclo, ficando ele também preso na barbearia, e descobre que o local é, na verdade, uma estrutura em constante movimento, uma nave movida por histórias, situada nas costas de uma aranha colossal que percorre uma vasta teia — o Nexus. Essa revelação ocorre quando ele tenta escapar e quase cai no vazio, percebendo que a barbearia existe simultaneamente em Lagos e sobre a aranha.

O Barbeiro revela que é um contador de histórias que auxiliou muitos deuses, espalhando e preservando suas narrativas através da teia, também chamada de Nexus — algo como um inconsciente coletivo. No entanto, sua criação funcionou tão bem que os deuses o excluíram dela. Abby é, na verdade, Abena, filha de Anansi (divindade africana em formato de uma aranha com características humanas, conhecida por sua astúcia), que se aliou ao Barbeiro depois de seu pai perder uma aposta, oferecendo-a como prêmio. Nesse momento de revelação, entende-se que a Doutora Fugitiva acompanhou esses eventos: numa breve — mas animadora — aparição, ela pede perdão a Abby, e deixa uma frase sugestiva: “talvez eu termine essa história em algum momento”. É também nesse ponto que o episódio reforça a complexidade do ressentimento: a origem do Barbeiro, que começou como alguém que somente queria preservar e proteger as histórias, é marcada por traições e apagamentos.

Esse gesto narrativo é potente por vários motivos. Primeiro, ele espelha como o continente africano — berço da civilização humana — viu seus saberes, ciências e mitologias apropriadas, apagadas ou reconfiguradas pela lógica colonial eurocêntrica. Há estudos que mostram como filósofos gregos, como Pitágoras, estudaram por décadas no Egito. A matemática egípcia já resolvia problemas com base decimal, e a medicina daquele império realizava cirurgias e procedimentos que o ocidente só alcançaria séculos depois. O episódio resgata isso simbolicamente na figura do Barbeiro: todas as histórias vêm dele, e mesmo o nome “Anansi” é posterior à sua verdadeira origem. Essa é uma metáfora clara sobre como se dá a transmissão e a apropriação do conhecimento. O Brasil é um reflexo direto disso. Como muitos dizem, é um país construído por africanos e indígenas, e se tornando afro-indígena em sua essência. Quem construiu esse país e tudo o que ele tem foram essas populações. E tudo isso foi usurpado por outras culturas — seja quando o Brasil importou branquitude com políticas de branqueamento, seja quando cedeu à eugenia. Vale lembrar que, mesmo não existindo um Ministério da Eugenia oficialmente, as ideias eugenistas influenciaram as políticas públicas de saúde, educação e imigração no Brasil. Houve incentivo à imigração europeia para “melhorar” a população, ao mesmo tempo em que se invisibilizavam os saberes e culturas africanas e indígenas. Esse apagamento, simbólico e estrutural, ecoa diretamente nas camadas narrativas de The Story & the Engine, cujo apagamento do ser humano que construiu todas essas narrativas tem seu lugar usurpado pela máquina que ele próprio criou. Seja ela representando inteligencias artificiais ou a máquina imperialista que extraiu e apagou os saberes originais de todo um continente. Esse episódio é uma metáfora viva da luta por memória, justiça e pertencimento cultural.

O Barbeiro planeja alcançar o centro do Nexus para cortar todos os deuses da teia, matando-os e desestabilizando a cultura humana. Abena, mudando de ideia, trança o cabelo do Doutor em um estilo que funciona como um mapa para o centro da fonte de energia do motor. O Doutor e Belinda conseguem reconfigurar o coração da máquina para permitir que o Doutor o alimente com sua própria “história sem fim”, mas a energia é excessiva, e o motor começa a se autodestruir. Ele então convence o Barbeiro a libertar as pessoas presas e a escapar com elas. O motor é destruído, e a barbearia volta ao normal.  Os homens desaparecidos retornam para seus entes queridos, e Omo pede desculpas ao Doutor. Omo se aposenta e deixa o Barbeiro encarregado da administração da loja, enquanto Abena parte para viver sua vida. O Doutor e Belinda partem enquanto ele lhe conta a história de como conheceu Omo. Ele começa a história oralmente, com os dizeres “era uma vez” — coincidentemente ou não, a primeira fala do Doutor após o retorno de Russel T. Davis em The Star Beast.

Sem dúvida, esse é um dos episódios mais ambiciosos e simbólicos de toda a história recente de Doctor Who. Ele atravessa camadas de tempo, raça, identidade e tecnologia para contar uma história que é, no fundo, sobre pertencimento e memória. A barbearia — como espaço de acolhimento, mas também de prisão — simboliza a ambiguidade das instituições culturais e tecnológicas: lugares que podem tanto nos libertar quanto nos capturar. A figura do Barbeiro, ancestral de todas as histórias, torna-se metáfora viva do apagamento das narrativas africanas e da usurpação de saberes que moldaram o mundo, mas que seguem desvalorizados em sua origem. A escolha de utilizar tranças nagô como mapas de fuga ecoa diretamente a resistência das pessoas escravizadas e de certa forma até conecta o episódio à história afro-indígena brasileira, marcada por apagamentos e reconstruções. Belinda se firma como uma das companheiras mais humanas da série, e já se tornou uma das minhas favoritas. Ncuti Gatwa brilha ao transitar entre divindade e vulnerabilidade. A máquina que se alimenta de histórias para se manter funcionando — sempre à beira da falência, exigindo mais e mais — é uma alegoria poderosa tanto da escravidão moderna quanto das inteligências artificiais generativas, e talvez até de um capitalismo tardio, que extraem narrativas e vidas humanas em troca da ambição de poucos. Mas, ao final, a maior potência do episódio está na recusa do ressentimento. Ao invés de vingar-se, os personagens escolhem libertar. Em tempos como os nossos, isso é revolucionário.

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Ele faz um comentário sobre humanismo — no sentido mais radical do termo. Não transforma o antagonista em alguém a ser derrotado, não opera numa lógica de bem contra mal, de preto contra branco. O vilão aqui não é uma pessoa ruim, necessariamente. É alguém ferido, que pode até merecer perdão. Alguém que merece uma nova chance. Uma chance de redenção. E que pode, no futuro, tornar-se um aliado. É uma história sobre como a criação do próprio homem pode se voltar contra ele, retirando sua agência, sua liberdade de criar. Belinda, em um dos momentos mais importantes, diz à Abby: “Pessoas machucadas machucam pessoas.” É disso que trata o episódio — da complexidade dos personagens, da complexidade das relações humanas. Ele tenta redimir o seu antagonista a partir de uma perspectiva humanista, e consegue.

Todos os temas da temporada aparecem aqui, retomados desde o primeiro episódio. Humanismo. Inteligências artificiais generativas. Machismo. Racismo. A cultura dos incels, dos trolls. Quando falo de humanismo, estou falando da perda do que nos torna humanos. O ser humano perdendo sua humanidade e se tornando outra coisa — um certo transumanismo. Essa crítica é recorrente na temporada. E o episódio deixa isso claro quando o Doutor diz: “A troll in the web.” Mais uma vez, temos o Barbeiro, criador da World Wide Web — um tipo de inconsciente coletivo — sendo descrito como um troll. Mas é um troll com redenção. E isso é interessante.

É também um episódio especial pelo lugar onde se passa. Lagos. Uma cidade da Nigéria. Um país do sul global. Doctor Who transita pouco fora da Europa e, quando o faz, geralmente vai para os Estados Unidos. Aqui não. Aqui a história se passa em Lagos. E é importante ver isso representado. Ver Lagos sendo representada. A ambientação é parte da força do episódio.

Além disso, o episódio provoca o público, deixando pontas soltas. A Senhora Flood aparece de relance, como vem fazendo desde o começo da temporada. Há o mistério da Capitã Poppy. A Doutora Fugitiva também surge brevemente e deixa uma fala sugestiva. Tudo isso mexe com a imaginação de quem assiste. Dá vontade de ver mais. E deixa claro: estamos diante de um clássico. Uma das histórias mais extraordinárias, profundas e com infinitas possibilidades de leitura da era New Who.

Texto de Ycaro Gabriel

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