
Um bebê muito especial nasce em 1865, em uma casa de madeira à margem de um vilarejo na Baviera. O pai da criança, o sétimo filho de um sétimo filho, que está tendo um sétimo filho, revela ter enviado uma mensagem ao vilarejo avisando sobre o nascimento, mas acredita que ninguém virá. O nome do pai da criança é Herr Zufall. Zufall, que em alemão significa acaso, coincidência, e Herr, que significa senhor. Algo como “Senhor Acaso” em alemão, o que confere imediatamente uma dimensão simbólica ao nascimento da criança. Este bebê nasce em um lar de madeira, numa floresta, sob o domínio do acaso.
Essa ambientação sugere fortemente que a família seja do povo romani (cigano), vivendo afastada dos limites da cidade. Por que isso importa? Historicamente, em 1865, os povos romani na Baviera e em grande parte da Europa Central não eram vistos como cidadãos plenos. Sofriam severa marginalização social, jurídica e cultural, frequentemente vítimas de violência sistemática e exotificação romantizada. A ausência completa de suporte comunitário durante o nascimento do bebê reforça essa condição de isolamento e forte marginalização legal, social e cultural. Ao colocar o nascimento desse bebê com aura mística, à margem da floresta, distante dos vilarejos e sem qualquer presença comunitária, como uma parteira ou moradores locais, o episódio reforça simultaneamente o forte misticismo associado ao povo romani naquela época e destaca a ausência de apoio coletivo que essas comunidades recebiam nas localidades onde viviam.
A mãe do bebê deseja chamá-lo Jonas, evocando explicitamente o contexto místico e religioso da Baviera católica do século XIX. Os números sete e três (o bebê sendo a terceira geração de um sétimo filho), também possuem um profundo simbolismo católico, especialmente relevante na Baviera de 1865. O sete simboliza a perfeição espiritual, presente nos sete sacramentos e nos sete dias da criação divina cristã, enquanto o número três remete à Santíssima Trindade, expressando unidade e completude divinas incorporados em diversas práticas e crenças tradicionais ciganas naquela época. Assim, o nascimento do bebê como sétimo filho de um sétimo filho intensifica esse simbolismo, conectando as tradições católicas bávaras à espiritualidade romani, destacando o contexto altamente carregado de simbolismos dessa narrativa e desse personagem.
Rani chega com a intenção explícita de sequestrar o bebê e desaprova veementemente a escolha do nome Jonas. Ao ser confrontada pela mãe da criança, Rani responde com poderes mágicos: ela beija a testa do bebê e realiza desejos que transformam a mãe em pétalas de violeta, os irmãos em patos e Herr Zufall em uma coruja. A coruja, frequentemente associada à sabedoria, reforça ainda mais estereótipos associados aos povos romani. E a Rani, que sempre representou um cientificismo – a crença filosófica da ciência como a única forma valida de ver o mundo, aqui ganha contornos históricos do que o cientismo já defendeu na Segunda Guerra Mundial. Durante a Segunda Guerra Mundial, regimes totalitários (em especial o nazismo) usaram justificativas científicas ou pseudo-científicas para legitimar opressões, como o racismo biológico, eugênia, esterilização forçada e o genocídio de povos considerados “inferiores”. Incluindo os romani, além de judeus e outras minorias de direitos sociais. A ato dela de sequestrar a mística de um povo e usá-la redefinir a realidade, anulando culturas, famílias e simbolismos religiosos, espelham práticas históricas de manipulação científica para controle social e apagamento de identidades, tal como aconteceu com o uso distorcido da ciência nos regimes da época.

Aqui, Rani utiliza os poderes do bebê, revelado como uma encarnação do deus dos desejos Desiderium, para criar uma realidade alternativa que reflete os desejos conservadores e reprimidos de Conrad. E isso, faz todo sentido narrativo pelo arco da temporada. Se começamos com um episódio do planeta dos incels, no último ponto de virada da temporada agora temos uma realidade inteira dos incels. Infelizmente, nesse episódio, apesar de ter esse detalhe explicito no texto, não parece ter muito o que comentar sobre o assunto além do que já disse em A revolução robô. Então esse tema, que merecia aprofundamento pela proporção que tomou, torna-se apenas um detalhe da motivação de um personagem também já devidamente explorado pela temporada e não aprofundado nesse novo capítulo. A nova realidade materializa-se, e vemos Londres, no ano 2025. Em um cenário visual e comportamental que remete diretamente às séries americanas dos anos 1950, nessa realidade, o Doutor passa a se chamar John Smith, vivendo uma vida doméstica aparentemente comum com sua esposa, Belinda, e sua filha, Poppy, a la Wandavision. Cada personagem é apresentado com desejos cotidianos simples e reprimidos: Belinda deseja que John não vá trabalhar e fique em casa, John deseja o mesmo, mas precisa cumprir suas obrigações profissionais, e Poppy deseja ter um gato. A repressão dos desejos parece fazer parte do ideal dessa realidade criada por Conrad. Também é apresentado o conceito que toda vez que alguém questiona a estrutura dessa realidade, ocorre uma “falha na Matrix”, simbolizada pela quebra de uma xícara.
Ruby surge na casa de John Smith reconhecendo-o como Doutor, um ato que rompe a estabilidade aparente da realidade alternativa. Belinda denuncia imediatamente Ruby, o que evidencia o controle repressivo e conservador presente nessa sociedade. Qualquer comportamento fora das rígidas normas conservadoras é visto com suspeita e reprimido fortemente, como quando John Smith elogia a aparência de outro homem, sendo imediatamente condenado no ambiente de trabalho, assim como sua indagação de quem seria a Rani.
Nessa realidade, Conrad assume o papel central de patriarca e comunicador televisivo dessa realidade, transmitindo constantemente narrativas sobre o Doutor e os Time Lords. A televisão é utilizada por Conrad como uma ferramenta poderosa de controle social e uniformização da narrativa coletiva. Se a infelicidade do personagem foi sugerida por uma violência parental de uma mãe solteira, agora, seu mundo ideal, seu ideal de felicidade, sua realidade, condiciona mulheres exclusivamente a papéis familiares tradicionais e submissos. O mundo reflete explicitamente seus traumas pessoais. Rani aproveita a vulnerabilidade emocional de Conrad, que tem uma parece ter um desejo grande de aprovação de uma figura materna, e se apresenta como tal figura, manipulando-o emocionalmente para sustentar a estabilidade desse mundo de desejos.

Enquanto usa o desejo genuíno mas distorcido de Conrad, a Rani (ou as Ranis) tem sua própria agenda. É revelado que para atingir seu objetivo será necessária a morte dos humanos para trazer um glorioso passado de volta. Mais uma vez remetendo a narrativa nazista da Segunda Guerra Mundial. Essa narrativa ainda é atual? É uma pergunta genuína. Grupos neo-nazistas ganham popularidade em todo o mundo, e essa ideologia pode não apenas remeter ao passado, mas aos dias atuais. Entretanto, mesmo fazendo sentido uma personagem que representava o cientificismo cair na eugenia e no racismo, a parte do cientificismo parece ficar de lado da personalidade dessa encarnação. Seus atos parecem ser guiados menos pela ciência como verdade absoluta que ultrapassa filosofias e éticas e mais pelo desejo de poder, com a ciência cumprindo apenas o papel de ferramenta para alcançar seus objetivos. E, nesse episódio, mais especificamente um “método científico” aplicado à magia.
Ruby une-se a Shirley Bingham numa resistência formada por pessoas segregadas e marginalizadas, especialmente indivíduos com deficiência, que buscam combater o sistema imposto por Conrad e Rani. Nesse contexto, o Doutor começa a notar inconsistências e procura confrontar Belinda sobre suas memórias, mas acaba sendo denunciado por ela. Ambos são presos e levados ao Bone Palace, uma base flutuante e sombria comandada pelas Rani. No Bone Palace, Rani revela ao Doutor seu verdadeiro plano: utilizar sua dúvida crescente para destruir a realidade alternativa e libertar Ômega do chamado “Subverso”, com o objetivo maior de ressuscitar os Time Lords. À meia-noite, a realidade construída começa a se deteriorar rapidamente. O Doutor, em um momento dramático, cai da torre do Bone Palace com suas memórias verdadeiras que retornaram, enquanto grita por sua filha, Poppy.

Muitos elementos para serem trabalhados, frenesi, univocidade. O episódio é evidentemente escrito para um público que está com a atenção dividida, muitas vezes assistindo a videos curtos ou rolando o celular enquanto a TV está ligada. Essa prática não é nova, televisão é escrita como experiência secundária há anos, a diferença é que agora é escrita para uma experiência de segunda tela. Principalmente nos guarda-chuvas do streaming. Por conta disso, o subtexto dos episódio tem sido explicitados no texto: o episódio não se esconde em sutilezas. Elementos como a xícara que quebra funcionam como “gritos audiovisuais”, que chamam o expectador a prestar atenção em algo importante e crucial do que vai dizer. A narrativa não se permite respirar, e tudo acontece muito rápido de ação em ação.
Isso responde a uma transformação concreta da recepção televisiva contemporânea. Estudos realizados ainda em 2014 já apontavam que a maioria dos espectadores já consumiam televisão enquanto interagiam com outros dispositivos, principalmente redes sociais. A ficção televisiva passou a se moldar a essa lógica: simplificação de subtextos, reforço visual e repetição de pontos-chave. O episódio faz isso não por limitação, mas por adequação. A crítica ao conservadorismo, à repressão e à nostalgia autoritária não está escondida: está escrita no roteiro, falada pelos personagens e reforçada por símbolos imediatos. É televisão feita para ser compreendida até por quem não está prestando atenção.

Embora eu tenha minhas preferências textuais e audiovisuais, isso não é uma crítica: é apenas um recurso usado pela série. Mas quando ela tira seu subtexto e coloca no texto, corre o risco de parecer uma paródia de si mesma. Arte costuma ter ambivalência; aqui, o episódio tenta agradar fãs antigos e novas gerações ao mesmo tempo, e nisso pode perder força para o fã mais fervoroso e de outra geração. Mesmo entregando easter eggs e referências nostálgicas para esse público, o formato narrativo está embalado para consumo rápido por quem assiste distraído: quem está vendo TikToks ou navegando em redes sociais enquanto assiste ao episódio como experiência secundária. Assim, provocações visuais e textuais unívocas são construídas para chamar a atenção dessa nova geração, principalmente se forem mais engajadas social e politicamente. É como se Wish World fosse o ponto mais alto de uma montanha-russa narrativa na segunda temporada de Doctor Who. Momentos de respiro e ambivalência, ficam de fora, pois o público que participou dessa subida estaria ansioso e tenso pelo que vem pela frente.

Cineasta e engenheiro UX, entusiasta de narrativas fantásticas. Interesso-me por histórias que atravessam o tempo, questionam estruturas e revelam o que há de mais humano no estranho.