Como Jodie Whittaker reinventou Doctor Who

A estreia de Jodie Whittaker como a primeira Doutora é o evento mais ansiosamente aguardado da televisão neste ano. A Décima Terceira Senhora do Tempo revela para a Stylist como ela conseguiu reinventar esse ícone britânico.

Entrevista de Jodie Whittaker para revista Stylist em 21/09/2018. Artigo de Alix Walker.

Algumas coisas que diziam para as mulheres nunca fazerem:
1. Trabalhar depois de casar (a proibição de mulheres casadas em locais de trabalho era uma prática bem comum; o Banco Lloyds manteve a proibição até 1949).
2. Ir ao espaço (no início da década de 1960, os astronautas tinham que ser pilotos de testes militares, uma carreira que só podia ser exercida pelos homens).
3. Jogar futebol (até 1971, a Liga de Futebol declarava que o esporte era “inadequado para o corpo feminino”).
4. Ser o Doutor em Doctor Who.

Felizmente, as mulheres provaram ao longo do tempo que todos estavam errados.

Em 25 de Dezembro de 2017, Jodie Whittaker se tornou a primeira Doutora a pisar na Tardis desde o início da série em 1963. Independentemente de você ser um verdadeiro whovian ou nunca ter visto a série (o que é pouco provável uma vez que Doctor Who é assistida por 110 milhões de pessoas pelo mundo), você certamente consegue entender a gravidade da situação. Esse é o tipo de programa no qual os fãs se consideram uma família com fortes crenças sobre quem deveria ser o Doutor. É uma série tão enraizada na cultura britânica que se assemelha à tradição e importância da pasta Marmite, do chá com leite ou do sitcom Only Fools and Horses. Escolher uma mulher para o papel foi uma decisão corajosa e importante.

“Tudo o que eu senti ao longo da minha carreira é amor e apoio da minha irmandade”

É uma importância que a atriz de 36 anos entende. “Que coisa extraordinária [ser a primeira Doutora],” ela exclama. “Que seja um momento histórico, e que ele cresça até o ponto em que não se precise mais falar sobre… o que seria um máximo.” Apesar do drama em torno do anúncio, a reação tem sido em grande parte positiva, principalmente pela forma adorável como Whittaker está mantendo o desempenho brilhante que tinha no papel de Beth Latimer em Broadchurch. Hoje ela está entusiasmada com a “honra” do papel e do elenco diversificado de “amigos” – personagens que estão substituindo a tradicional companion do Doutor.

“Não nos limitemos a olhar apenas para as pessoas que se parecem conosco. Esse é o futuro.”

Durante nossa entrevista, ela fala (com um sotaque de Huddersfield) de “sorte” frequentemente – um tanto irônico, já que ela é a 13ª Senhora do Tempo, um número tradicionalmente desafortunado. A sorte que seu elenco teve em Venus, ao lado de Peter O’Toole durante seu último ano na Guildhall School of Music and Drama em 2005. Sua sorte ao trabalhar em Broadchurch com Chris Chibnall, que passou a ser o produtor executivo de Doctor Who. E quão sortuda ela é por não ter sofrido nenhum tipo de assédio sexual ao longo de sua carreira.

Eu não acho que o sucesso dela tenha a ver com sorte. Eu nunca conheci ninguém com tanta energia, tão segura sobre o que quer e o quanto ela trabalha para obtê-lo. Ela conversa com muita empolgação e demonstra interesse em todos os tópicos, do vinho ao feminismo, mas reservada quando algo remotamente pessoal é sugerido. Ela leva sua mãe para as filmagens, entretanto, nunca revelou o nome de sua filha de três anos com seu marido, o ator americano Christian Contreras. Mesmo se eu quisesse cruzar a linha, eu não iria. Ela é forte, essa mulher do norte da Inglaterra que cresceu com seus pais e irmão em Skelmanthorpe, West Yorkshire. Não consigo pensar em uma pessoa melhor para interpretar uma heroina moderna.

“Quando estávamos na escola eu lembro sobre as pessoas que aprendíamos e não havia mulheres”

Conte-me sobre o processo de audição para Doctor Who.
Foi cansativo, no sentido de ser um processo longo, e difícil, por causa de quão secreto era. Eu descobri que tinha conseguido o papel na terceira audição e comecei a chorar de felicidade.

O que o personagem tem de mais atraente para você?
Não há regras. Você é um alien, mas você está em um corpo humano, então você pode fisicamente ser qualquer coisa. E esse é o lance sobre esse personagem – ele faz vibrar cada parte do seu corpo de uma maneira que eu nunca experimentei. Você está se movendo – mental ou fisicamente – constantemente, então a energia necessária lhe dá uma enorme descarga de adrenalina. Eu queria interpretar essa Doutora como uma luz que entra em uma caverna pela primeira vez, porque todo encontro é novo: os amigos, os mundos, os monstros – tudo é novo.

Com quais Doutores anteriores você conversou sobre o papel?
Eu tive sorte de poder falar com o David (Tennant, com quem ela trabalhou em Broadchurch), Peter (Capaldi, o Décimo Segundo Doutor) e Matt (Smith, o Décimo Primeiro) antes do anúncio oficial. Todos me disseram a mesma coisa: Interpretar a Doutora seria diferente de tudo o que eu já fiz e de tudo o que irei fazer. Isso é extraordinário e incomparável.

“Não devemos nos limitar a admirar apenas quem é parecido conosco. Esse é o futuro.”

Como você lidou com as reações dos fãs?
Há copilações das reações de pessoas à revelação, e é algo bizarro de se ver. Nós vivemos em um momento único, as pessoas postam tudo na internet e então podemos acompanhar a empolgação e, em alguns casos, o medo que elas possuem. Mas quando vemos esses vídeos, de pessoas de diferentes idades e de diferentes partes do mundo reagindo à série – algo que eu nunca tinha feito antes – isso nos motiva porque, se eles estão me aceitando em sua família, o que queremos fazer é que a família cresça ainda mais.

A importância de termos uma Doutora é enorme. Como você se sente em relação a isso?
Este é um momento incrivelmente importante, e ao mesmo tempo é bem triste que estejamos passando por isso em 2018. Eu quero aproveitar isso. Represento algo que ficará eternamente marcado pelo resto da minha vida. Mas com o tempo isso tem que deixar de ser uma surpresa. Torço para que isso nos ajude a perceber que nós podemos ter heroínas. Gravidade (o filme estrelado por Sandra Bullock e vencedor do Oscar) arrecadou milhões e milhões de dólares. Da mesma forma, Mulher Maravilha. Nós precisamos pensar nos personagens independentemente do gênero. E, afinal de contas, estou interpretando um alien! Não devemos nos limitar a admirar apenas quem é parecido conosco. Esse é o futuro que queremos. E as pessoas precisam entender que a existência de pontos de vista diferentes sobre algo não é ruim, mas sim interessante e excitante. É o que acontece comigo. Às vezes sinto como se fosse tratada como um ET só pelo fato de ser mulher.

Você nota o impacto que isso terá nas crianças que são bombardeadas com brinquedos separados por gênero e programas de TV para as crianças menores?
Eu nem posso começar a falar sobre o quanto isso me deixa nervosa. É muito revoltante ver as mensagens subliminares que são passadas para as crianças por meio da TV. Quando estávamos na escola eu lembro sobre as pessoas que aprendíamos e não havia mulheres.

“Agora, é hora de todos nós contribuirmos e a hora de todos nós ouvirmos”

Qual foi a importância de negociar o mesmo salário pago a Peter Capaldi, o último Doutor?
Isso nem deveria ser negociado. Eu nunca aceitaria receber menos. Sou igual a todo mundo e nunca me vi como melhor ou pior que ninguém. Não gosto de pensar em receber menos do que alguém que fez o mesmo trabalho que eu, nenhuma mulher gosta. Mas neste trabalho em particular não precisei exigir isso porque já haviam me oferecido o mesmo salário.

É ótimo que você esteja falando sobre um assunto que era um tabu.
Isso é novo, não é? Nós sabemos que quando alguém fala sobre algo, e com tanta empolgação, as pessoas acabam ouvindo. E fico muito animada de poder vivenciar este momento e finalmente ter uma voz que é ouvida. No futuro vamos nos lembrar deste momento com orgulho do que conseguimos conquistar.

Que mudanças os movimentos #MeToo e Time’s Up conseguiram fazer na indústria?
Eu nunca fui assediada sexualmente. Na primeira vez que me perguntaram isso, poderia ter respondido “Eu tive muita sorte”, e me deprime ter que me considerar sortuda, mas sou. Eu sou uma das sortudas que não passaram por isso. Relembrei toda minha vida refletindo se havia tido alguma experiência sexista. Não consegui pensar em nada, mas acredito que fui doutrinada para aceitar o sexismo como algo normal. O que tem mudado é que todo mundo – homens e mulheres – está começando a não tolerar o que antes era jogado para baixo do tapete.

Agora é hora de todos contribuirmos com esses movimentos e ouvir quem passou por isso. Devemos respeitar e honrar todos aqueles que tiveram a coragem de contar os abusos que sofreram.

A pressão para esse papel é enorme. O que você tem feito para diminuir o estresse?
Eu amo vinho. Com o meu sotaque, se entro em um restaurante, eles sempre oferecem a carta de vinhos para outra pessoa e eu digo logo “Não, não, não!”. Eu posso não ser uma especialista em vinho, mas sei do que gosto. Minha escolha depende do que estou comendo. Gosto de combinar com a comida. Para as entradas, sempre escolho um vinho branco ou rose. Realmente amo isso. Comprar vinhos para mim é o mesmo que comprar livros. Fico totalmente imersa. Então, ao final de um dia cansativo, eu sempre me recompenso com algumas taças de vinho.

Você passa grande parte da sua vida nos sets de filmagem. Qual a importância de casa para você?
Você se acostuma a fazer de qualquer lugar em que esteja um pedaço da sua casa. Eu já me mudei tantas vezes que há várias coisas minhas espalhadas por aí. Penduro coisas na parede para deixar o espaço com a minha cara. Meu trabalho é difícil por durar várias horas, mas não sou uma enfermeira trabalhando na emergência, eu tenho pessoas que me trazem café, pessoas para buscar meu almoço, amigos que me fazem rir ao longo do dia, e brinco de fingir. Este trabalho é bem extenso, às vezes fico horas esperando prepararem tudo para a gravação.

Durante esse tempo, eu confiro as infinitas mensagens no WhatsApp, acompanho no Instagram as postagens do #braddersbangerz (vídeos de Bradley Walsh cantando no carro), eu telefono para meus amigos e os incomodo já que eles possuem empregos normais e não estão livres nas terças à tarde, e, de repente, é como “vai, vai, vai!” e você tem que entrar no set imediatamente. O mais difícil é que no horário em que chego em casa, as pessoas não estão mais disponíveis.

Como que a sua infância em Yorkshire moldou a sua personalidade?
Eu fui criada em uma casa muito divertida. Tenho um irmão mais velho que foi criado da mesma forma. Nós dois jogamos cricket, futebol e squash. Sem querer, meus pais me criaram de forma neutra. Ninguém me tratava diferente do meu irmão por eu ser mulher. Essa liberdade me permitiu desenvolver um senso de humor.

Além disso, eu pude criar o meu próprio mundo. Nós vivíamos em uma cidade do interior, eu podia sair e jogar, assistir a filmes que nem sempre eram apropriados para a minha idade, porque eles sabiam que eu adorava. Eles não me sobrecarregavam com a importância da escola, porque sabiam que eu não era estudiosa. Para eles, desde que eu estudasse, e não maltratasse os outros, eles estavam felizes.

Eles pensavam que praticar esportes e ter um grupo de amigos era tão importante quanto estudar. Eu tinha muita dificuldade nas matérias e percebi que tinha um ego muito grande e por isso precisava ser boa em algo. Meu orientador disse: “Apenas um em cada dez atores conseguem ter sucesso, e você provavelmente não terá”. Tive muita sorte de chegar em casa e ouvir meus pais dizerem: “Se você se dedicar apenas ao seu plano B, você nunca conseguirá conquistar o A”.

Você fala muito sobre sorte.
Mas isso foi sorte. Há milhares de incrivelmente talentosos artistas, músicos e atores. Mas há também o lugar certo e a hora certa e Venus (meu primeiro filme) foi meu lugar certo na hora certa. Eles poderiam ter escolhido o elenco um ano antes de me graduar, ou três anos depois quando tivesse desistindo de atuar por não ter conseguido um emprego. Aquele foi o meu bilhete dourado. Eu me dou o crédito de ter atuado bem, mas não consegui o papel por conta própria. Não teria conseguido se não fosse pelo meu agente. Então, desafio qualquer um a provar que não há momentos que são pura sorte na vida das pessoas.

O seu marido também é ator…
Eu tenho sorte de chegar em casa e poder conversar com alguém que trabalha na mesma área que eu. Mas isso é tudo que falarei sobre ele.

Qual é a sua próxima ambição?
Agora eu expandi as minhas opções, sinto que tenho infinitas possibilidades. Adoraria atuar em um faroeste. Séries como Godless e Westworld são incríveis. Adoro essa combinação de elenco com personagens tão ricos e sólidos. Doctor Who é uma grande porta de entrada para mim, mas não quero que seja a única.

O que te inspira?
Quando as pessoas defendem o que acreditam. Houve vezes em que eu me contive por medo de como seria interpretada, então me inspiro em pessoas que falam o que pensam.

Gillian Anderson postou no Twitter: “Sim!” #breakthemould #13thDoctor”, quando foi revelado que você seria a Doutora. Você sente alguma afinidade com esses atores, como Anderson, que mudaram o cenário da ficção científica?
Eu não sinto uma afinidade, eu as admiro. Há um mito sobre os atores, principalmente as mulheres – que não nos damos bem, que somos competitivas. Tudo o que eu senti ao longo da minha carreira foi amor e suporte das mulheres com quem trabalhei. Se não conseguisse o papel, teria ficado feliz e encantada de ver outra mulher fazendo. Um exemplo disso foi o papel em The Seagull no Royal Court que perdi para Carey Mulligan. Fui assistir depois e pensei “Foi por isso que não consegui”. Para a maioria dos atores, é excitante ver boas histórias. E, quando essas histórias conseguem englobar gêneros e etnias, tornam-se ainda melhores. Espero que isso seja normal no futuro.

Fotografia: Tom Van Schelven

Estilista: Steph Stevens

Fonte: Stylist

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