
O último episódio de Doctor Who da temporada apresenta uma discussão sobre o futuro, passado e a nostalgia dos velhos tempos, nos fazendo refletir sobre o papel da própria série em tudo isso.
Tudo começa de onde parou no último episódio, Wish World. E se o último episódio, acima de tudo, focava nos desejos reprimidos de seus personagens, esse episódio foca na visão de futuro de seus personagens, principalmente na visão de futuro de seu personagem principal. O Doutor está caindo por conta dos acontecimentos do último episódio, até que uma porta magicamente se abre, e de lá sai Anita, personagem do episódio Joy to the world, grávida de seis meses, para salvar o Doutor.
A realidade reinicia, retornando para 7h da manhã do dia 23 de maio, quando o relógio da Rani bate a meia-noite. Ruby acorda em casa, aparentemente lembrando de tudo. Belinda acorda, sem o Doutor ao seu lado dessa vez. O Doutor acompanha Anita no Time Hotel, que está em perigo, já que se encontram em 4202 e o mundo continua acabando em 2025. Ela conta como todo dia de folga passava procurando o Doutor. Vemos ela abrindo portas para vários momentos dele, com participações nostálgicas de Matt Smith e Jon Pertwee como o Doutor, e até mesmo de Daleks.
A jornada de Anita termina quando ela encontra o Doutor de Ncuti no episódio The Rogue, dançando com o Ladino. Ao ver que não tinha chance de ter uma relação amorosa, ela diz, saiu de lá e foi direto para Ricardo, seu atual parceiro e pai do seu bebê. E aqui já podemos perceber como o episódio começa a discutir visão de futuro. Anita estava se segurando ao passado, usando todo seu tempo para reencontrar uma pessoa que já se foi, até perceber que o que buscava era uma idealização da realidade, então ela se abre ao novo, aqui representado pelo roteiro na continuidade de si através de sua gestação.

Ou seja: para alcançar o futuro, é necessário deixar de olhar para trás, é necessário se abrir ao novo. Mesmo que seja através da continuidade. E o Doutor quer isso, ele enxerga Poppy como um milagre, de importância ímpar. De alguma forma (provavelmente por conta da TARDIS cuidar da sua roupa nessa encarnação) ele também muda para uma vestimenta de estética neutra em relação ao gênero, com mais cor e uma saia (a trilha sonora de Murray Gold chama atenção nesse momento). Ele leva Belinda e Poppy para o Time Hotel, onde Belinda toma ciência de si, e percebe com alegria que ela e o Doutor têm uma filha.
Doctor Who se posiciona muito bem na perspectiva de visão de futuro aqui. Nossos protagonistas saem do papel de família tradicional num mundo de repressão, para uma família no ano de 4202. Ainda é um pai, uma mãe e uma filha. O problema nunca foi a configuração do que é uma família, e sim a restrição de suas relações e seus papeis na sociedade. Belinda não é mais uma tradwife do TikTok, que vive o presente numa versão idealizada de uma família dos anos 50, e nem o Doutor vive essa fantasia.
O episódio deixa clara a sexualidade dessa encarnação do Doutor, e a relação de amizade bem definida entre ele e Belinda. Essa constituição familiar, no mundo da Rani e Conrad, somente podia existir em cima da repressão do desejo dos dois e da despersonalização de suas verdadeiras identidades. E é isso que o episódio está interessado em discutir, deixando clara a mensagem em muitos detalhes. O Doutor chega na Unit vestindo “o futuro”, adotando seu verdadeiro nome, escolhido por ele, frisando que “Sr. Smith” é um nome morto. Coronel Christofer, da Unit, acha estranho estar usando terno, Susan Triad de estar usando nylon e Kate de estar usando lã. Moda é importante para esses personagens e refletem quem eles são. Rosie aparece na Unit, e é explicado que Conrad nem sequer cogitava sua existência naquela realidade opressora, provavelmente por ela ser uma mulher trans.

Então, a Unit aciona um sinal que acorda e chama para a sede todas as pessoas num raio de 16 quilômetros que trabalhavam na unidade. A Rani usa sua sedução e o desejo reprimido de Conrad por uma figura feminina — e, de certa maneira, sexualizada — para fazê-lo encontrar o Doutor. A Rani, então, chega à Unit, onde todos já estão reunidos e despertos da realidade criada, Anita segura a porta aberta para manter essa situação.
Nesse momento, a Rani propõe ao Doutor reviver os Senhores do Tempo e restaurar o passado glorioso de Gallifrey. O episódio parece correr demais nessa parte, o que é particularmente lamentável, considerando a presença de uma atriz excepcional como Archie Panjabi, vencedora do Emmy por sua atuação em The Good Wife. Sua caracterização da Rani é excelente, porém sua participação acaba sendo apressada. Após conseguir trazer Ômega de volta, a personagem é rapidamente devorada por ele.
É justamente aqui que surge a principal e talvez mais significativa mensagem do episódio. A Rani revela explicitamente seu racismo ao acreditar que os Senhores do Tempo são uma raça superior, e pretende utilizar os genes de Ômega para criar uma nova sociedade à sua imagem idealizada. Contudo, ao buscar esse “passado glorioso” para atingir seu objetivo, algo inesperado acontece, em um ponto que pode dividir os fãs de longa data: Ômega surge como um ser monstruoso e decrépito. A mensagem é clara: o “passado glorioso” idealizado por grupos supremacistas é, na verdade, monstruoso e decadente, incapaz de sustentar a construção de um futuro — um futuro que inevitavelmente consumirá quem tentar recriá-lo.

O Doutor e Belinda já haviam optado por cuidar de Poppy, uma criança feita de desejos e esperanças. Resgatar aquele passado sombrio representaria justamente a extinção dela. É na oposição desses dois conceitos que reside o que o episódio quer transmitir: o futuro deve ser protegido, e a luta deve ocorrer em nome das esperanças e desejos das gerações vindouras. Aqueles que buscam erguer o futuro baseados num passado idealizado frequentemente não compreendem o quão assustador esse passado pode realmente ser.
A narrativa, portanto, direciona-nos à busca incessante por um futuro guiado por desejos e esperanças. Num desfecho lacaniano, o Doutor entrega aquilo que não possui a alguém que não o deseja, resgatando a realidade onde Poppy existe e dando em troca sua própria vida — ou, pelo menos, uma encarnação dela. Este se revela um episódio de regeneração.
Uma grande surpresa acontece quando a Doutora de Jodie Whittaker aparece para auxiliar o Doutor de Ncuti. Numa cena que reflete sobre a importância de novas características do Doutor, como dizer “eu te amo”. Um Doutor marcado pela sua sensibilidade, por uma representação de masculinidade que não cai num estereótipo de imaginário de poder masculino e que questionou essa representação a todo momento: até mesmo quando a representou, fez de maneira crítica. O Doutor de Ncuti dá seu adeus, com um sorriso no rosto, olhando diretamente para a personagem Joy, de Joy to the world. E na sua regeneração, Billie Piper nos surpreende como o novo rosto que emerge da explosão de energia regenerativa.

É um episódio difícil de definir sentimentalmente. Há muitos pontos altos, uma mensagem até mesmo interessante e uma das melhores atuações de Ncuti no papel. Mas, apesar de um bom conceito e de atores incríveis como Archie Panjabi e até mesmo a pequena Sienna-Robyn Mavanga-Phipps, que interpreta Poppy, o episódio transmite uma sensação de oportunidades perdidas. Parece faltar timing na edição; o episódio soa extremamente recortado e apressado para caber em uma hora, com alguns conceitos que não recebem o devido tempo ou tom para alcançar verossimilhança.
Um grande exemplo é o arco de Belinda, que reflete a participação de Varada no episódio Boom, em que sua personagem acaba “adotando” uma criança órfã. Entretanto, como a temporada nos apresentou uma Belinda que não tinha nenhum indício de desejar uma filha, no fim da temporada parece somente que a personagem perdeu seu papel ativo, aceitando passivamente o que a trama lhe oferece sem contestação. Isso é algo totalmente diferente da forma como ela foi apresentada inicialmente, e não seria um problema caso o arco da personagem a tivesse conduzido até esse ponto. Mas, como uma das melhores companions de Doctor Who, inicialmente contestadora e cheia de agência para compreender e solucionar os problemas da trama, Belinda termina sem agência, passiva às decisões e confinada numa caixa.
O episódio também é contraditório: ao mesmo tempo que reflete sobre os perigos da nostalgia, acaba reforçando-a em suas escolhas e decisões para o futuro da série. A despedida de Ncuti, após uma temporada de altíssima qualidade, também decepciona, parecendo um arco incompleto. Propositalmente ou não, Doctor Who parece se inspirar no estilo Marvel de conduzir narrativas: aposta na nostalgia e na construção contínua de hype para engajar. É sempre uma enxurrada de conceitos com promessas de entrega futura. Se vamos abordar um lado sombrio do Doutor, por exemplo, vamos abordar como um prelúdio de algo que vem por aí. A paternidade? Vem aí. A temporada boa é sempre a próxima, os personagens estão em eterna introdução. Parece nunca se comprometer a levar seus personagens ao limite de seus conceitos, sempre se segurando na construção de um hype futuro.
Nesta temporada, quando tivemos novos conceitos e novos escritores, Doctor Who floresceu. No final, o que fica é a pergunta: nostalgia vende, ou pelo menos vendia. Mas será que a pressão de grandes estúdios como a Disney para que seus produtos culturais sejam uma eterna busca do passado de maneira formulada está prejudicando a construção de um futuro?


Cineasta e engenheiro UX, entusiasta de narrativas fantásticas. Interesso-me por histórias que atravessam o tempo, questionam estruturas e revelam o que há de mais humano no estranho.