REVIEW: The Church on Ruby Road

Em tradução livre, o Décimo Segundo Doutor disse “Tudo termina e esse processo sempre é triste. Mas as coisas também tem um recomeço e isso é sempre feliz” (“Everything ends and that’s always sad. But everything begins again, too. And that’s always happy” – The Return of Doctor Mysterio, 2016).

No intervalo dos últimos episódios, tivemos a despedida da Décima Terceira Doutora, interpretada por Jodie Whittaker, em The Power of The Doctor (2022) e também nos despedimos mais uma vez de David Tennant, desta vez dando vida ao Décimo Quarto Doutor em The Giggle (2023). Assim, finalmente damos boas vindas à primeira aventura de Ncuti Gatawa como o Décimo Quinto desde que foi anunciado oficialmente em maio de 2022.

Reestabelecendo algumas tradições de Doctor Who, voltamos a ter episódios especiais de Natal e no especial deste ano, The Church on Ruby Road (A Igreja da Rua Ruby) somos apresentados à premissa central da aventura onde, há muito tempo, em uma véspera de Natal, um bebê foi abandonado na neve. Avançando para o presente, descobrimos que esse bebê é Ruby Sunday, que acaba conhecendo o Doutor e tudo o que esse encontro pode desencadear: duendes cantores, bebês roubados e muito mistério.

Além do retorno do especial de Natal, como já vinha acontecendo na trilogia de episódios especiais em comemoração ao sexagenário da série que antecederam The Church on Ruby Road, temos também a volta de Russell T Davies como showrunner da série no que será, em breve, uma temporada regular com um novo Doutor, uma nova companion e novas aventuras pelo tempo e espaço.

Se você não assistiu ao episódio, aconselho assistir e voltar depois, pois esta não é uma review livre de spoilers e alguns pontos do enredo serão discutidos.

Algumas características da escrita do Russell T Davies podem ser notadas já nos minutos iniciais da aventura: assim como no retorno de Doctor Who em 2005 com Rose, neste episódio começamos sendo apresentados à Ruby Sunday e sua rotina desastrada. Após a cena inicial onde vemos Ruby, ainda bebê sendo abandonada em frente à igreja na rua Ruby, avançamos para 2023 onde ela está sendo entrevistada por um programa de televisão à procura dos seus pais biológicos. Isso, claro, com a participação de alguns pequenos desastres não naturais causados por duendes (ou goblins, se você assistiu em inglês). Vemos Ruby passar pelo cotidiano com alguns obstáculos inseridos por terceiros, como falta de energia elétrica, sacolas de mercado rasgadas e mesas que somem. Toda vez que conhecemos uma nova companion, temos a oportunidade de sermos reapresentados ao universo de Doctor Who e quando a companion é extremamente carismática, como é o caso, e possui atributos com os quais o telespectador consegue se relacionar, esse processo acaba sendo mais fácil. Somos apresentados, também, a família adotiva de Ruby: sua mãe Carla e avó fofíssima Cherry. Juntas, as três Sundays tem uma das maiores famílias do mundo, pois Carla abriga temporariamente crianças que não tem lares definitivos. De certo modo, essa situação se assemelha com a dinâmica que o Doutor tem com seus companheiros se aventurando pelo espaço.

Por falar em Doutor, enquanto isso, tendo apenas algumas centenas de milhares de anos, ele está onde deveria estar: na boate dançando e sendo o inspetor oficial de gim-tônica. Particularmente, quando o fandom declarou que essa nova era na série seria um reboot, eu não poderia ter ficado mais animado. Pra mim, Doctor Who sempre foi uma série sobre mudanças e sobre futuro; por mais que eu goste de menções à companions antigas ou quando a série se auto referencia, eu acredito que de tempos em tempos é preciso ter um recomeço, ou uma regeneração, para que a série possa seguir adiante sem estar o tempo todo olhando para trás apresentando os mesmos Daleks em todo final de temporada, por exemplo. Para que o Doutor possa explorar o universo e suas infinitas possibilidades. Nisso, Doctor Who continua sendo Doctor Who e Ncuti é o Doutor.

Em paralelo, Carla Sunday está hospedando temporariamente uma nova recém nascida, Lulabelle. Tudo bem tudo bom se não fossem duendes que raptam a pequena Lulabelle para fins ainda incertos. É nessa tentativa de recuperar a bebê que Ruby oficialmente conhece o Doutor e, pessoalmente, eu mal posso esperar para assistir mais episódios explorando a dinâmica dos dois que, já de cara, parece ser bem natural. Aqui outro trunfo que Doctor Who tem: a série sabe o que é e, depois de 60 anos, sabe também quando pode não se levar a sério. O que de mais absurdo poderia acontecer após duendes roubarem uma recém nascida com o propósito de usá-la como ingrediente principal para um banquete? Por que não tornar isso uma cena musical? Por que não fazer Doutor e Ruby responderem ao Rei dos Duentes cantando? Brilhante.

Após a fuga e de volta ao apartamento das Sundays, notamos algumas similaridades entre Ruby e o Doutor, uma delas sendo que ambos foram abandonados recém nascidos e foram criados por uma família adotiva. Nesse ponto o Décimo Quinto Doutor comenta que ele não tem ninguém, o que, se a gente for parar para analisar certinho, não deixa de ser verdade: todas as encarnações passadas tiveram os seus companheiros de viagem, construíram algum tipo de família e fizeram novas amizades. Essa nova encarnação do Doutor ainda está vagando solitária. Indo para a boate dançar? Sim, mas ainda operando solo.

Letrux escreveu em Salve Poseidon “Eu queria estar em todas as coincidências do mundo / Porque é aonde todo mundo está um pouco mais místico / Na hora das coincidências todas as pessoas estão mais conectadas / Com uma excitação de isso aqui não ser só isso aqui” que, aproveitando o universo um pouco mais lúdico no pós Toymaker, também serve como combustível para que os duendes tenham mais força em suas ações. A cada coincidência que a nova dupla constata, eles sentem os duendes se aproximando.

Nesse plano B para ter um bebê para o jantar, os duendes viajam no tempo para o momento em que Ruby é deixada nas portas da igreja e a capturam ali mesmo. Esse é outro tema que RTD gosta de explorar em suas tramas: imaginar uma possível realidade com o que aconteceria caso determinado evento não tivesse acontecido, como foi feito na quarta temporada com Turn Left (2008) caso Doutor e Donna não tivessem compartilhado aventuras na TARDIS. Este ano, em The Church on Ruby Road, além de ter uma menção à rachadura do Décimo Primeiro Doutor (2010), vemos o que aconteceria caso Ruby não tivesse sido adotada por Carla Sunday quando ainda era bebê; temos uma família apática e fria. Um ponto super legal dessa parte do episódio, fora o peso emocional trazido pela família Sunday, foi a produção ter escolhido diminuir a saturação das cenas para passar a ideia de um ambiente frio e sem vida como consequência por não ter Ruby na família.

Com a ajuda da mais nova bugiganga, luvas com um tipo de gravidade invertida, o Doutor consegue por um fim aos duendes e recuperar a pequena Ruby. No retorno da série em 2005, Doctor Who trouxe uma pegada mais fácil de assimilar com os mocinhos evitando todo tipo de violência e abominando o uso de armas. Para conseguir ter Ruby de volta, o Doutor acaba destruindo o navio dos duendes. Ainda é cedo para assumir qualquer tipo de desenvolvimento que o personagem do Doutor pode ter nessa nova era, mas eu gostei de ter essa nova camada para o personagem; me lembrou um pouco o Terceiro Doutor, da série clássica, que era mestre na arte marcial venusiana e descia a porrada em geral.

Com as despedidas não feitas, Ruby tem tempo para juntar dois mais dois e assume que a pessoa que ela acabou de conhecer e que a ajudou a recuperar a bebê sequestrada tem chances de ser, além de tudo, um viajante no tempo.

Dessa vez o Doutor não convida diretamente Ruby para viajar com ele na TARDIS, porém está esperando de portas abertas. Depois da recapitulação feita pelo Toymaker em The Giggle (2023) com alguns dos finais trágicos que suas companions tiveram, achei interessante o Doutor aguardar na TARDIS, tendo até uma troca de figurino nesse meio tempo, sabendo que essa é uma escolha que a própria Ruby tem que fazer.

Quem é a mãe biológica da Ruby? E a vizinha que quebra a quarta parede e fala diretamente com a gente? Essas, e provavelmente outras perguntas, serão refeitas e respondidas em Maio com a volta de Doctor Who no Disney+.

Virem à esquerda e nos vemos por aí no tempo-espaço. Até a próxima.

Escrito por: Gustavo França | 03 de Janeiro de 2024

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