REVIEW: The Interstellar Song Contest

The Interstellar Song Contest tem uma premissa simples: Eurovision no espaço se mistura com Duro de matar.

Mas esta é uma temporada ímpar de Doctor Who, e a narrativa aqui é muito maior que a própria premissa. O episódio permite leituras que fazem referência a todo o arco temático da temporada: metalinguagem, humanismo, xenofobia, racismo, fantasias de poder masculino e mais. A trama segue a história de um povo perseguido e demonizado, vítima de um genocídio corporativo que queimou um planeta inteiro pelo lucro em cima do sabor artificial de mel. E no centro da trama, uma pessoa genocida que veio desse povo e que planeja matar mais inocentes. Um episódio de Doctor Who com um enredo pertinente, corajoso e atual.

BBC Studios/Bad Wolf/Lara Cornell

O episódio começa com o Doutor (Ncuti Gatwa) e sua companheira Belinda Chandra (Varada Sethu) chegando à Harmony Arena, uma estação espacial que sedia o 803º Concurso Interestelar de Canções. O evento, que lembra o formato do Eurovision Song Contest, é transmitido para trilhões de espectadores em toda a galáxia. Apresentado por Rylan Clark, um apresentador britânico conhecido por participar do The X Factor e apresentar o Eurovision, que é descongelado de uma suspensão criogênica para a ocasião. E ele não é o único apresentador queer homenageado nesse episódio, Graham Norton também faz uma aparição mais tarde.

Rylan Clark-Neal e Sabine, apresentadores do Interestellar Song Contest
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Holograma do apresentador Graham Norton.
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Enquanto o Doutor e Belinda assistem ao Festival Interestelar da Canção com entusiasmo, observando a presença de Rylan como prova de que a Terra vive em maio de 2025, a senhora Flood os observa e vê que o vindicator já está pronto e otimizado, e que o Doutor o guarda na TARDIS enquanto assiste ao concurso patrocinado pela Melpoula.

A série nos apresenta agora dois personagens, Gary e Mike. Eles estão tentando entrar no camarote que o Doutor está ocupando, sem sucesso, já que, devido à chegada da TARDIS no local, os ingressos dos dois estão dando erro. Mike tenta conversar com um dos robôs que estão ali, pedindo para resolver o problema. Esse robô responde que a fase 1 está iniciada. Descobrimos que se trata de uma invasão à segurança do evento, uma sabotagem nos robôs, causada por Kid e Wynn.

Enquanto o caos se instala nos bastidores do evento, com Kid invadindo e ameaçando os trabalhadores da arena, somos apresentados a Cora, a grande favorita para vencer o concurso daquela noite. A trama se intensifica quando Kid e Wynn substituem a transmissão ao vivo por uma gravação de ensaio. No entanto, há uma falha: Rylan Clark não aparece nas gravações, o que alerta o Doutor para a sabotagem em andamento.

A primeira apresentação musical é abruptamente interrompida por um alarme — a bolha de contenção da arena está se abrindo. O domo de oxigênio é desativado, resultando na expulsão do Doutor e da maioria dos espectadores para o espaço. Alguns permanecem na estação. Cora é salva por Wynn ao fechar a arquibancada que estavam, e Belinda se beneficia desse feito. Gary e Mike que não conseguiram entrar na arena também são poupados da catástrofe.

Décimo Quinto Doutor voando no espaço.
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Belinda, abalada pela perda do Doutor, enfrenta a incerteza sobre sua localização e futuro. Nesse contexto, Nena, diretora técnica do evento, confronta Kid, chamando-o de monstro por suas ações. Kid responde que está apenas retribuindo o tratamento que sempre recebeu — sendo visto como um monstro devido aos seus chifres. Esse diálogo apresenta que há marginalização e o preconceito enfrentados por sua espécie. Nina, diretora da equipe de produção do evento, informa que ainda há tempo para salvar aqueles expulsos pela bolha, pois estão presos na “concha de mavidade” — uma referência à alteração da palavra “gravidade” para “mavidade”, introduzida no episódio Wild Blue Yonder — mas Wynn se recusa a salvá-los.

Ao sair da arquibancada, Belinda encontra Cora e seu agente, que foram salvos por Wynn. Eles discutem a situação, e o agente, ex-membro da equipe técnica, afirma que pode acessar os sistemas da estação para ajudar. No entanto, todos os sinais estão bloqueados para evitar fraudes nas apostas do concurso, impedindo qualquer comunicação externa. 

No auge do caos, Belinda está sozinha. Isolada em uma estação espacial hostil, sem o Doutor, sem rumo, sem saber se algum dia voltará para casa ou verá sua família novamente. Em pânico, desorientada, à beira do colapso, ela faz o que qualquer um faria: entra em crise. E é nesse momento que Cora a conforta.

Cora não oferece grandes respostas. Nem promessas. O que ela oferece é uma frase simples: “Calma, você ainda tá viva.” E, naquele momento, de medo, confusão, ruptura essa frase se transforma num gesto de acolhimento que diz muito sobre a personagem de Cora. Desde esse momento é sugerido que ela também carrega suas próprias cicatrizes. Parece reconhecer no desespero de Belinda algo que já viveu. É difícil não pensar nessa mensagem como um lembrete para pessoas fora da tela: mesmo que esteja perdido e sozinho, você ainda tem a vida, portanto, esperança.

Quando o Doutor está à deriva no vácuo da bolha de mavidade, congelando lentamente, somos surpreendidos por uma aparição inesperada: sua neta, Susan Foreman. Interpretada por Carole Ann Ford, que reprisa seu papel após mais de quatro décadas. Susan surge em uma visão enquanto o Doutor está inconsciente, chamando-o de “Avô” e implorando para que ele volte e a encontre. A natureza dessa visão permanece ambígua. Não está claro se é um sonho, uma manifestação metafísica ou uma comunicação real de Susan. O episódio não fornece respostas definitivas, deixando espaço para interpretações e especulações futuras. Essa cena não apenas reacende a conexão emocional do Doutor com sua neta, mas também levanta questões sobre a sobrevivência de Susan e seu papel no universo atual da série. Sua aparição serve como um lembrete das raízes do Doutor e das relações que moldaram sua jornada, adicionando profundidade emocional ao episódio.

Susan dentro da TARDIS
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O Doutor acorda com o chamado de sua neta. Usa um disparador de confetes para se impulsionar através do vácuo da bolha de mavidade e consegue retornar ao complexo da Harmony. Essa cena, é envolta em um CGI impressionante realista. Lá, é ajudado por Gary e Mike. Mike é médico, e Gary o auxilia enquanto tentam ressuscitar o Doutor, que chega desmaiado. O casal Mike e Gary é carismático, e há um encantamento imediato pela figura do Doutor — por sua genialidade, por seus dois corações. Há também um certo gaze entre eles. Esse episódio reforça que, nessa regeneração, o Doutor é um homem gay — o que é muito interessante.

O Doutor começa a trabalhar um plano para salvar todos e revela a Mike e Gary que manipulou a gravidade da Harmony Arena, triplicando-a para manter todos seguros. Essa estratégia não apenas impede que os espectadores sejam lançados ao espaço, mas também os coloca em estase criogênica, permitindo sua posterior recuperação.

Mike e Gary na Harmony Arena.
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Enquanto isso, nos bastidores, Kid e Wynn, os Hellions responsáveis pelo sequestro da arena, demonstram conhecer um segredo sobre Cora, a favorita do concurso. O assistente de Cora descobre que eles estão reescrevendo o código de segurança do sistema, e ao ser questionado sobre quem são os Hellions, responde que são “bruxos” cujos chifres conferem poderes psíquicos — uma descrição carregada de preconceito. Cora confronta essa visão, destacando que tais estereótipos são frequentemente atribuídos a espécies que as pessoas não compreendem.

Essa conversa prenuncia uma revelação significativa: Cora é, na verdade, uma Hellion que cortou os seus próprios chifres para sobreviver naquela sociedade preconceituosa. Cora se mutilar, retirando os próprios chifres para ser aceita, para caber, para sobreviver, não é um elemento solto nesse episódio. Vale destacar aqui, a roteirista desse episódio, Juno Dawson — que inclusive escreveu um dos melhores livros de Doctor Who sobre a 13ª Doutora —, é uma mulher trans. Sua escrita é sensível e trata temas complexos em seu subtexto, levantando muitas perguntas sobre isso. O que a roteirista faz com Cora é dolorosamente específico e sublimemente orgânico, a ponto de fazer imaginar a personagem como um avatar da própria autora dentro desse episódio, especialmente em sua cena mais emocionante, quando canta. O fato de Cora ter retirado parte do próprio corpo abre leitura sobre como muitas mulheres trans vivem contextos onde a mera presença de uma parte específica de seu corpo as torna alvo de violência, exclusão ou deslegitimação. A pressão para “adequação” pode levar a decisões radicais simplesmente para sobreviver socialmente. Autoras como Susan Stryker já discutiram como o desejo de “normalização corporal” muitas vezes não é genuinamente individual, mas imposto por uma lógica cis-sexista que exige modificações para que a identidade trans seja considerada minimamente válida. Obviamente é uma questão maior, e isso não invalida as experiências trans que optam pela cirurgia. É uma discussão mais ampla, sobre escolha versus imposição.

Cora e Belinda em Harmony Arena
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E não é como se fosse uma fantasia distante. O episódio fala do agora. As pessoas desse universo terem preconceito com uma espécie em específico conversa diretamente com nossa realidade. Não é novidade para ninguém que o alvo prioritário da extrema direita no mundo atual são as pessoas trans. E não só: imigrantes, homossexuais, qualquer um que fuja do padrão branco, cis, hétero e nacionalista. Eles viram espantalhos. Servem como alvo fácil para esconder o verdadeiro foco: dinheiro. Enquanto os donos do poder acusam e patrocinam propagandas que colocam essas minorias como “ameaças à sociedade”, a política antipovo prospera. Promovendo ações que prejudicam e até matam pessoas com minoria de direitos e protege os 1% que pode pagá-los e ajudá-los a se reeleger. É o truque mais velho do fascismo: criar um “nós contra eles”. Polarizar. Os Hellions são o espantalho dessa história, e o roteiro faz questão de direcionar o nosso olhar para a dor do outro, e entender que ela é real. E que também deveria ser nossa.

E vale a pena destacar que enquanto um planeta inteiro foi exterminado por causa do sabor artificial do mel, o que as pessoas estão fazendo nessa história? Batendo num espantalho. Em vez de discutir o genocídio, culpam o povo que sobreviveu. Dizem que foram eles que destruíram tudo. Que eles são perigosos. Que são demoníacos. Que são monstros. Tudo isso é muito bem escrito.

Para quem está acostumado com os monstros clássicos de Doctor Who, essa temporada tem feito algo sublime: desconstruir a ideia de monstro colocando essa figura no corpo mais humano possível. Algumas pessoas podem até esperar fantasias, máscaras, um vilão de látex com cara de monstro, como nas temporadas antigas. Mas essa temporada de Doctor Who propõe algo diferente. Os monstros de agora refletem os medos sociais de agora, em oposição com os medos diretos da Segunda Guerra Mundial — eugenistas dominadores que se acham uma raça superior enquanto exterminam outras raças. Ou a Guerra Fria — uma mente coletiva que sacrifica a emoção em nome da eficiência, do progresso e da sobrevivência, gritando assimilação ecoando caricaturas anticomunistas comuns no Ocidente na época. Agora os monstros de Doctor Who se parecem mais com seu vizinho. Ele tem um rosto ordinariamente comum. E o monstro desse episódio é de um povo vítima de um extermínio. Ainda assim, ele planeja um genocídio. O episódio não justifica isso, mas mostra como a dor histórica pode ser reconfigurada como arma. E é justamente esse deslocamento, que ecoa certas posturas políticas atuais, como as de Benjamin Netanyahu, onde a memória de um trauma coletivo é instrumentalizada para legitimar novos atos de violência.

Kid e Wynn, habitantes do planeta Hellion.
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Quando a trama avança, o Doutor descobre que o plano de Kid é usar o sistema de votação do concurso, que cria um elo psíquico entre os espectadores e a transmissão, para emitir uma onda delta. Esse sinal, transmitido em massa, tem como alvo o lobo temporal do cérebro humano. A ideia é interromper o funcionamento cerebral ao ponto de matar trilhões de pessoas ao mesmo tempo. E veja, a ideia de atacar diretamente uma região do cérebro pela TV carrega uma metáfora forte sobre manipulação em massa, sobre como discursos audiovisuais podem desativar a capacidade crítica de quem assiste.

A associação com propaganda é inevitável. A gente sabe como funciona: campanhas sistemáticas, muitas vezes sustentadas por governos, têm o poder de moldar a percepção das pessoas até que um genocídio seja visto como necessário, ou até justificável. Israel utilizou o Eurovision 2024 e 2025 como ferramenta de propaganda estatal, promovendo campanhas financiadas pelo governo para impulsionar votos e suavizar sua imagem internacional em meio às críticas por sua ofensiva em Gaza. A ideia de um genocida se aproveitando de um concurso musical para promover o genocídio não é nova.

O Doutor confronta Kid sobre a ameaça a três trilhões de pessoas. Nesse momento, vemos um lado sombrio do Doutor: ele ameaça lançá-lo no vazio e observá-lo congelar até morrer. Belinda presencia a cena e comenta, com estranheza e medo: “Esse não é ele.” E ela tem razão. Esse não é exatamente o personagem que a série vinha apresentando até aqui. Embora o Doutor de Ncuti Gatwa tenha demonstrado frieza ao celebrar a não existência de alguém no primeiro episódio desta temporada, esse tom impiedoso e ameaçador é inédito nessa encarnação. Esse momento é fundamental, pois adiciona uma nova dimensão ao personagem. Na primeira temporada, o Doutor oscilava entre alegria e tristeza. Agora, ele é confrontado com algo mais difícil de equilibrar: a raiva. E não uma raiva catártica, mas metódica, fria e ameaçadora. Essa postura remete ao momento Time Lord Victorious explorada no episódio The Waters of Mars, mostrando como, em situações extremas, o Doutor pode assumir posturas desafiadoras ao seu humanismo radical para proteger o que considera justo.

O Doutor utiliza os conhecimentos de Gary, especialista em hologramas da arena, para criar um dispositivo capaz de transformar luz em matéria. Com isso, ele entra nos bastidores onde Kid estava e explode a máquina que reescrevia o sistema para usar o elo telepático como arma, um cubo que estava prestes a matar três trilhões de pessoas. Ele faz isso com um simples clique de sua chave de fenda sônica. Kid tenta matá-lo com um tiro, mas o Doutor é apenas um holograma feito de luz. O verdadeiro aparece logo em seguida e, também com sua chave de fenda sônica, desarma Kid.

E, então, o Doutor ultrapassa um limite. E o episódio mostra isso de uma maneira crítica, aludindo a esse heroísmo que reforça essa fantasia de poder masculino. Comum no gênero de super-herói, considerado por muitos de um imaginário fascista pelo motivo de resolver as coisas com o poder da força individual de uma pessoa poderosa, pela violência. Muitas vezes, nesse gênero, com a identidade do protagonista preservada por uma máscara pra não ter que lidar com problemas de ordem social, pois agem à margem da lei. Doctor Who não chega tão longe, o Doutor não se disfarça, não se mascara pra não ter complicações jurídicas por assim dizer. Mas mesmo assim, mesmo aqui, o Doutor está flertando com esse imaginário que as pessoas estão acostumadas: do herói que resolve tudo com as próprias mãos, que não segue regras e que, com esse superpoder e essa força, combate pessoas que são essencialmente do mal. Solidificando a luz, ele começa a dar intermináveis choques em Kid. Em sua mente ele vê sua neta Susan novamente o dizendo pra parar, mas ele continua. Ele passa da linha diante do olhar de estranhos, e precisa da chegada de Belinda pra dizer pra ele que “Não”. Nesse momento é sugerido que o Mestre (na encarnação “Spy Master”, interpretado por Sacha Dhawan), que destruiu Gallifrey e exterminou os Senhores do Tempo após descobrir a origem do Doutor como a “Criança Atemporal”, é o gatilho que o faz passar dos limites com Kid aqui. E a imagem de Susan na sua mente ao mesmo tempo seria uma lembrança para honrar sua memória e um gatilho para que ele não pare. E isso levanta uma pergunta. Pode Susan ter sobrevivido ao genocídio dos Senhores do Tempo?

Doutor enfurecido.
BBC Studios

O Doutor recebe um abraço de Belinda. E isso o faz parar. É um gesto simples, mas poderoso. Belinda já havia demonstrado compreensão profunda no episódio anterior ao afirmar que “pessoas machucadas machucam pessoas”. Ela reconhece, naquele momento, que o que o Doutor precisava não era de confronto, mas de afeto. De alguém que enxergasse sua dor. Belinda é enfermeira — e esse cuidado não é uma coincidência narrativa, mas uma extensão de quem ela é enquanto personagem.

Esse ato, e tudo o que ele representa, mostra que Belinda é uma das melhores companhias que o Doutor já teve. Uma das mais bem escritas. Sua presença foi construída com sutileza ao longo da temporada e, aqui, finalmente se revela essencial. Há algo de profundamente bonito nessa construção — bonito de ver. Talvez o Doutor tenha, sim, um lado sombrio. E é sempre bom lembrar que personagens complexos não precisam ser perfeitos. O Doutor não precisa ser um herói clássico, infalível, sem falhas, sem raiva, sem sombra. Ele é uma pessoa. E é justamente por isso que, aqui, ele ganha tridimensionalidade. Vemos ele se chocar consigo mesmo, se emocionar, e isso convence. 

Com a ajuda de Gary e Mike, o Doutor consegue salvar todas as pessoas congeladas, resgatando-as com um feixe de luz sólida e descongelando-as. Wynn confronta Cora. Cobra dela responsabilidade por quem ela é, e pelo que escondeu até ali. Questiona: o que ela fez diante do genocídio cometido pela Corporação contra Hellia? É nesse ponto que o episódio atinge sua parte mais emocionante. Em meio a gritos de “Volte para o seu lugar”, Cora revela sua identidade Helliana e canta uma música que a Corporação tentou apagar. Um canto triste e comovente, que o expectador pode não saber o significado das palavras, mas consegue sentir sua beleza e sua importância naquela trama.

E do mesmo jeito que Cora usa a arte e as nuances linguísticas para criticar a corporação que patrocina o evento em que ela está, esse roteiro parece entender que eles estão fazendo o mesmo ao usar a plataforma da Disney e a BBC para criticar tudo que critica. Até 2025, o investimento total do Reino Unido em exportações de armas para Israel ultrapassa £1 bilhão, somando licenças diretas e contratos industriais. A mesma crítica se estende à Disney, cuja corporação possui um histórico recente de apoio financeiro a políticos envolvidos em legislações abertamente anti-LGBTQ+. Após suspender temporariamente suas doações na Flórida em 2022 sob pressão pública, a empresa retomou os repasses em 2024. Desde então, voltou a contribuir com doações em espécie para comitês ligados a legisladores republicanos que aprovaram a chamada lei “Don’t Say Gay”. Toda essa consciência de si, de seus personagens e de seus bastidores faz com que esse episódio tenha um dos metacomentários mais inteligentes da temporada.

Além desse roteiro sublime e da direção acertada, a trilha sonora do episódio é um dos pontos altos do episódio, com Murray Gold entregando composições que capturam perfeitamente a fusão entre o espetáculo do Eurovision e a tensão dramática típica de Doctor Who.  A música não apenas complementa a narrativa, mas também serve como um veículo para explorar temas mais profundos, como identidade, resistência e memória cultural. A performance final de Cora, por exemplo, é carregada de emoção e simbolismo, refletindo a dor e a esperança de um povo marginalizado. A habilidade de Gold em transitar entre o grandioso e o íntimo, o camp e o comovente, reforça seu papel essencial na série e destaca a importância da música como elemento narrativo em Doctor Who.

No fim das contas, “The Interstellar Song Contest” é um episódio de Doctor Who sobre Doctor Who. Sobre o que a série ainda pode ser, mesmo sob a tutela de conglomerados como a Disney e a BBC, mesmo com as contradições gritantes que isso envolve. Porque em um mundo onde tudo é passível de ser transformado em mercadoria, inclusive a crítica, inclusive a memória, há algo de profundamente potente em ver um episódio que coloca o genocídio, o apagamento cultural, o trauma coletivo e o poder da arte no centro da narrativa. E que o faz sem se esconder, sem buscar conforto. Que olha direto pro espectador e o emociona. Um dos episódios mais densos da temporada.

E claro, após ser exposta ao vácuo do espaço, a Sra. Flood sofre uma bigeneração e revela-se como uma nova encarnação da Rani, interpretada por Archie Panjabi na cena pós-créditos do episódio. E aparentemente a TARDIS explode ao voltar para 25 de Maio de 2025. Só nos resta saber onde tudo isso vai dar, no finale de duas partes de Doctor Who.

Bigeneração de Sra. Flood e Rani
BBC Studios

Texto de: Ycaro Gabriel

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