REVIEW 12×08 – The Haunting of Villa Diodati

Escândalos e um labiritinto espaço-temporal no berço de Frankestein com alguns dos melhores escritores britânicos da história: é assim que a caçada na Villa Diodati começa, mas por aquele final, ninguém esperava…

Não se perca neste review, pois há SPOILERS surgindo de repente a qualquer instante daqui para frente…

Neste review, vamos falar sobre:

  • Os Shelleys, tragédias e heroicização
  • Byron e a Villa Diodati
  • Sustos, labirintos e… fantasmas?
  • Ashad, o moderno Prometheus
  • Cyberium (e o aviso de Jack Harkness)
  • Como fica o Universo Expandido agora?

Se o que você quer é finalmente o review, não vamos resistir, e aqui está o que você quer:

 

Mary e Percy Shelley

Nascida em 1797 como Mary Wollstonecraft Godwin, a escritora britânica Mary Shelley (Lili Miller) é uma das personagens históricas de destaque no episódio “The Haunting of Villa Diodati”.

Mary se tornou muito famosa por seus contos autorais de ficção do século 19, em especial por “The Last Man” e “Frankenstein“. É justamente na noite de verão em que ela cria o monstro do Dr. Victor Frankenstein, em junho de 1816 (noite em que o 8º episódio da 12ª temporada de Doctor Who acontece).

Mary também foi a responsável pela publicação de vários trabalhos literários do falecido esposo Percy Bysshe Shelley (interpretado por Lewis Rainer). Percy também foi um escritor inglês, mais voltado para poemas e contos, especialmente no gênero gótico, assim como Mary.

Tragédias

Nos eventos do episódio, Percy e Mary (ele com 24 e ela 19 anos de idade) ainda não eram casados, mas já tinham um filho, William Shelley, o bebezinho de apenas 6 meses de idade.

Infelizmente, o bebê morreria 3 anos mais tarde, vítima de malária, na Itália. Antes dele, Mary e Percy já havia perdido uma filha, Clara Shelley, que morreu apenas com 8 dias de vida, em fevereiro de 1815. Após William, eles tiveram mais uma menina, que também foi chamada de Clara Everina Shelley, mas ela também morreu pouco antes de William, aos 2 aninhos de idade.

Depois da morte dos 3 primeiros filhos, Percy e Mary ainda tiveram um quarto filho, Percy Florence Shelley, e este foi o único que conseguiu viver por 70 anos.

Casamentos e mais mortes

No entanto, Mary não foi o primeiro casamento de Percy. Aos 19 anos, ele já havia se casado com Harriet Westbrook, de 16, com quem teve dois filhos, Elizabeth Shelley e Charles Shelley. Três anos após o casamento, Percy conhece outra novinha, Mary Shelley, também de 16 anos.

Durante os eventos do episódio “The Haunting of Villa Diodati”, Harriet ainda era casada oficialmente com Percy, em junho de 1816. Ele havia abandonado os filhos e ela para fugir com Mary para a Suíça. Poucos meses depois, em novembro, Harriet cometeu suicídio, afogando-se. O corpo dela só foi encontrado um mês depois, o mesmo mês em que Percy rapidamente já se casou com Mary.

Ironicamente, Percy morreu em 1822 também vítima de afogamento, durante uma tempestade em alto mar. De 1815 a 1822, foram 7 anos de sofrimento para a ex-amante e agora esposa viúva grávida Mary Shelley.

No episódio, a Doutora usa justamente a morte de Percy para conseguir salvá-lo do Cyberium. Ela projeta na mente dele seus futuros últimos intantes de vida. Então vemos partes do corpo de Percy no mar, as últimas coisas que ele conseguiria ver de relance ao morrer afogado. Com isso, a mente de Percy acredita ter morrido, e isso fez com que o parasita Cyberium se desgrudasse do hospedeiro “morto”.

Heroicização no episódio

Apesar dessa novela da vida pessoal dos Shelleys, o casal é retratado como grandes heróis da humanidade, não apenas pela fictícia luta contra o Cyberman Solitário (Patrick O’Kane), como também pelo legado literário que deixaram. Segundo a 13ª Doutora (Jodie Whittaker), as palavras dos Shelleys influenciariam milhões de pessoas no futuro da história.

Assim temos uma corajosa jovem Mary, que começa simplesmente não tendo medo de histórias de terror e, pelo contrário, sentindo prazer nesses contos. Essa bravura é levada ao extremo quando ela, contrariando os avisos da Doutora, enfrenta sozinha um duelo dialógico com o Cyberman. É Mary quem descobre o nome do homem que existia antes da conversão cibernética, Ashad – e é por meio desse diálogo que nos aprofundamos no nível de crueldade daquele ciborgue.

Percy estava oculto o tempo todo, sendo levado também ao extremo da loucura e dos nervos pelo Cyberium, esse elemento inédito no folclore dos Cybermen. Quase senciente, essa cyber-tecnologia de inteligência artificial deu poderes extrafísicos a Percy, fazendo com que ele fosse o responsável pelas transmutações das barreiras espaço-dimensionais da Villa Diodati. Mais que isso, Percy estava em uma luta ética para proteger o Cyberium de ser obtido pelo vilão. Percy torna-se assim o misterioso Guardião.

“Palavras importam”

As diferentes lutas de ambos Shelleys se desenvolvem e se encontram em um mesmo propósito, o do não abandono (de Mary em relação a Percy, e de Percy em relação ao futuro da humanidade). Segundo a história pessoal de Percy, ele havia acabado de abandonar esposa e filhos, mas agora estava determinado a salvar a humanidade. Isso possivelmente deu-se por causa das inúmeras visões do futuro que o Cyberium imputou na mente do jovem, transformando-o de dentro para fora em um ser mais altruísta.

Muito do legado literário de Percy, após os eventos dessa cyber-caçada na Villa Diodatti, são relacionados a um futuro melhor, menos violento, mais livre e sustentável. Seus escritos misturavam conceitos da anarquia com vegetarianismo e resistências não-violentas, inclusive admiradas pelo histórico pacifista indiano Mahatma Gandhi. De fato, o legado literário de Percy influenciou muita gente, muitos escritores, filósofos e até políticos, de modo que, se nunca tivessem sido escritas suas palavras, sabe-se lá realmente como seria o mundo hoje em dia…

 

Lord Byron

Você se lembra da “quase companionAda Gordon Lovelace (Sylvie Briggs) no episódio “Spyfall (Parte 2)” nesta mesma 12ª temporada? Aquela talentosa matemática, que se tornou a primeira programadora de computadores da história, era ninguém menos que a filha de George Gordon, o Lord Byron (Jacob Collins-Levy) de “The Haunting of Villa Diodati”.

Lord Byron é uma personagem recorrente na linha do tempo do Doutor no Universo Expandido de Doctor Who, mas esta foi sua primeira aparição na série televisiva. Nos eventos deste episódio, Ada tinha por volta de 1 aninho de idade, e a mãe dela, Anabella Byron, havia acabado de se separar de Lord Byron devido ao comportamento depravado do marido, pouco antes de ele “fugir” com os Shelleys para a Suíça.

Lord Byron, assim como Percy Shelley, também foi um pai ausente, que abandonou a esposa e a filha. Porém, Byron não o fez por ter se apaixonado por outra mulher, mas sim porque era um safado sem vergonha um autoproclamado “homem livre”. A Doutora comenta com Byron que conheceu a filha Ada e que ela tinha “um cérebro e tanto”, e ele fica confuso, pois na época, Ada ainda era só um bebê.

Assim, tanto Percy como Byron estavam protagonizando escândalos sociais na Inglaterra e, por isso, fugiram juntos para a Villa Diodati.

Lá, Mary (ainda não) Shelley também leva consigo a meia-irmã (adotiva) Claire Clairmont (Nadia Parkes) para a Villa. É dito que Claire teve um caso com o cunhado Percy, mas era apaixonada por Lord Byron. Por isso, mesmo não sendo “moralmente obrigada” a deixar a Inglaterra, ela viaja com os Shelley até a Suíça para viver essa paixão com Byron. Dessa paixão na Villa Diodati, Claire sai grávida de Byron, e a filhinha Allegra Byron (agora meia-irmã de Ada) nunca foi legitimada.

Neste episódio 8, Claire comenta que Mary não recomenda que a irmã se relacione com Byron, por ele não ser confiável (tendo em vista ele ter abandonado a família na Inglaterra). Então Claire relembra logo em seguida que Mary não é a pessoa mais indicada para dar esse conselho, já que Percy também deixou uma família para trás.

 

A Villa Diodati

A mansão que dá nome ao episódio originalmente se chamava Villa Belle Rive, e foi o próprio Byron quem a nomeou Villa Diodati, em referência ao sobrenome da família italiana que era proprietária da casa na época. A propriedade é localizada à margem do Lago Geneva, na Suíça, e hoje é uma propriedade particular. Curiosamente, as filmagens do episódio não foram feitas na Villa Diodati original, mas em uma antiga propriedade do País de Gales, chamada Merthyr Mawr.

Durante os dias em que Byron alugou a Villa Diodati, é histórico que houve uma tempestade incomum para aquele verão e que durou três dias. Forçados a ficarem dentro da residência, os escritores se inspiraram no clima gótico da mansão para criar histórias assustadoras que influenciaram e perduram até hoje, tais como Frankenstein, de mary Shelley, e O Vampiro, de John Polidori (Maxim Baldry).

Sustos, labirintos e… fantasmas?

No episódio, a casa é mais do que um cenário, ela é uma personagem ativa durante boa parte da trama. A partir de determinado momento em que Percy, já invisível, se esconde na casa, ela passa a criar ilusões nos hóspedes, como um filtro de percepção. A casa “mal-assombrada” é assustadora tanto pelas ilusões (que depois descobrimos foram forjadas desesperadamente pelo Guardião do Cyberium), quanto por fantasmas.

E é aqui que temos uma das melhores ambientações desta história. Os mistérios envolvendo a casa são o principal mote antes da chegada do Cyberman. Foram vasos voando, quadros caindo, salas e corredores mudando de lugar, partes do esqueleto colecionado por Byron ganhando vida e atacando os hóspedes, pessoas fantasmagóricas aparecendo pelos cômodos… tudo isso com uma trilha sonora crescente e sinistra que garantiu a este espectador muitos sustos.

E por mais que alguns desses mistérios nos tenham rendido boa parte do tempo tentando decifrá-los, eles não foram explicados. Como o esqueleto ganhou “vida” ou quem eram a mulher e a criança fantasmas, por exemplo, foram deixados sem explicação – e de propósito. Isso faz com que pensemos na Villa Diodati como um lugar realmente mal-assombrado, que vai muito além das interferências do Cyberman.

Ponto super positivo para a roteirista!

 

Ashad, o moderno Prometheus

Aqui cabe também uma referência ao monstro do Dr. Frankenstein. Enquanto analisava o Cyberman, Mary percebia que ele era um homem composto de partes de vários outros homens e que, ao invés de um, poderia ter tido vários nomes. Então ela o chama de “moderno Prometheus”.

Prometeu é uma personagem da mitologia grega. A história dele tem muitas versões diferentes. Uma delas é que Prometeu cometeu um crime perante Zeus ao dar o fogo aos humanos. Zeus o teria punido obrigando-o a carregar uma rocha gigantesca morro acima, enquanto uma águia comia suas entranhas, em um sofrimento eterno. No entanto, Prometeu foi considerado pela humanidade como o incentivador da ciência e da capacitação dos mortais, mesmo que por meio de um ato divinamente imperdoável.

Nessa simbologia, o monstro do Dr. Frankenstein é concebido na ficação de Mary Shelley. O doutor se usa de uma tecnologia imoral para dar vida a um ser humano composto de partes de diversas pessoas mortas. Após constatar a “atrocidade” criada, Dr. Frankenstein abandona o monstro e o deixa à solta com suas próprias dúvidas, sombras e solidão, culminando assim em uma sucessão de atos terríveis e… spoilers.

Ashad vem ser o “monstro de Frankenstein” de Doctor Who, um pai de família que foi convertido em cyberman no futuro e que amava e era amado de volta. Mais sobre a história dele só vai ser revelado no episódio seguinte, “Ascension of the Cybermen”.

 

Cyberium (e o aviso de Jack Harkness)

Elemento novíssimo na cybermitologia, temos o Cyberium. Uma tecnologia plasmática prateada, de Inteligência Artificial, capaz de armazenar todo o legado dos cybermen ao longo da história e de criar estratégias de guerra a um nível inimaginável. De alguma forma, ele foi mandado de volta no tempo para enfraquecer os Cybermen durante uma futura Cyber-Guerra. Percy o encontra em 1816 e se torna o Guardião.

Isso é o que “o Cyberman Solitário quer”, nas palavras do capitão Jack Harkness (John Barrowman), no episódio “Fugitive of the Judoon” da mesma temporada. No entanto, o aviso era objetivo: “não dê a ele o que ele quer”, mas foi justamente isso que a Doutora faz, após um longo debate moral sobre sacrifício humano.

Nessa cena, vemos a Doutora completamente sozinha em sua decisão. E ela mesma faz questão de pontuar que ela não está no mesmo nível que os companions nessa “fam”. Em alguns momentos, ela está no topo, tendo que tomar decisões que nenhum outro poderia tomar – e que, em certos casos, isso significaria “perder”.

“Palavras importam.”

 

E o Universo Expandido?

Como se a era do novo produtor-executivo de Doctor Who, Chris Chibnall, já não fosse bastante polêmica e amarga ao gosto de boa parte da audiência da série, este episódio trouxe mais divergências. É que os eventos da Villa Diodatti envolvendo Byron e os Shelleys já haviam sido o mote de antigos audiodramas do universo expandido de Doctor Who, além de alguns quadrinhos e livros.

A Big Finish lançou vários audiodramas protagonizando o 8º Doutor (Paul McGann) e envolvendo Mary Shelley (Julie Cox), tais como “Mary’s Story” (2009), “The Silver Turk” (2011), “The Witch from the Well” (2011), “Army of Death” (2011) e até mesmo na estreia de McGann em audiodramas, “Storm Warning” (2001) e no também polêmico Shada (2003).

Essas histórias têm continuidade entre si, já que fazem parte do universo da mesma produtora, mas infelizmente não têm continuidade com o episódio televisivo “The Haunting of Villa Diodati” (2020). Isso deixou alucinados os fãs dos audiodramas, porque, até certo ponto, é possível combinar os universos e ter uma grande trama que se complementa. Porém, quando a TV ignora as histórias de outras mídias, fica impossível de combinar (a não ser pensando em universos paralelos, mas aí já seria forçar demais).

Fica então o debate: até que ponto as histórias da Big Finish são cânones; ou ainda: existe algo cânone em Doctor Who afinal de contas? Para alguns, a resposta pode ser relativa, mas para outros a resposta é setencial: Chibnall estaria “arruinando a continuidade da série”. Pessoalmente, não tomo partido, mas já sabemos que os eventos futuros em “The Timeless Children” ajudaram (e muito) para deixar essas fãs ainda mais revoltados com a tal “continuidade canônica” de Doctor Who.

 

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Texto: Djonatha Geremias (Universo Who)

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